agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

sábado, maio 31, 2008

As cidades e os mortos

26/05/2008

“Não existe cidade mais disposta a aproveitar a vida e a evitar aflições do que Eusápia. E, a fim de que o salto da vida para a morte seja menos brusco, os habitantes construíram no subsolo uma cópia idêntica da cidade. Os cadáveres, dessecados de modo que os esqueletos restem revestidos de pele amarela, são levados para baixo e continuam a cumprir antigas atividades. Destas, as preferidas são as que reproduzem momentos de despreocupação: a maioria é posicionada em torno de mesas servidas, ou colocada em posições de dança ou no gesto de tocar trombeta”.

Visitamos Eusápia, com a ordem de caminhar, estabelecer contato somente visual e sinestésico com os mortos. Não dá pra calar sempre. Mas, a voz, a fala, o registro simbólico, talvez, preservariam nosso corpo da experiência, mascarariam nossas possibilidades de relações com o real. A força da experiência pode ser aliviada e encobertada pelo discurso articulado da comunicação. Os símbolos sociais esquivam o olhar da coisa (não há nada de novo nisso). Caminhamos quase em silêncio, porque membros e órgãos falavam sozinhos com fone de ouvido e os mortos gritavam à nossa atenção. Aliás, como já foi dito, a morte é o contato com o silêncio. Calados, para visitar os mortos!

Essa cidade situada, sitiada n’outro plano da visão preserva sutilezas grotescas. Ali o que salta à percepção são os mortos. Aqui o que falta à percepção são os mortos.

Objetos falecidos pela perda da função na vida prática e ordinária esquecem de servir, se abandonam e somem diante dos olhos quase cegos do dia-a-dia que só vêem sinal fechado, outdoor arreganhado, promoção de camisinha e modelos de beleza. Aproveitar a vida cotidiana significa entorpecer a mente e falsear o desejo com des-prazeres. O mundo dos mortos é mais sinistro, obscuro, visceral. Está simbolicamente encoberto porque pode causar horror, ânsia, repugnância: é obsceno. Algodões ensangüentados, lenço de bolso (com escarros?), capa de bombom, restos de bumbum, madeira de ruínas, sacos vazios de comida, guimba de cigarro queimado, tijolos de des-construção, pedaços de limão, caixotes quebrados, remanescentes de feira, plaquinhas de venda (20 centavos), pets pequenas, vareta com resquícios de churrasco, galho de árvore, fitinha de santo, notícias já idosas de ontem, remédios pra não curar a dor, guardanapo com sujeira de bocas, líquidos, sólidos, pastosos...

Um grupo quase silencioso caminha recolhendo cadáveres. A caminhada performática enxerga o chão, a doentia sub-cidade. Depois de adentrado o mundo dos mortos não se deve olhar para trás, porque estátua e pedra eternizam qualquer mitologia, tornam centro a margem, clássico o barroco, sublime o grotesco.

Aquele bando recolhendo lixo, pareciam estranhar as pessoas tentando ir embora depois da labuta pelo pão, também de cada dia. Nas paradas, nas estações nos campos Elíseos, um de cada vez, instalando os objetos de acordo com a vontade aleatória do gesto. O proponente escolhe o lugar, mas a ordem define aquele que recolheu os restos. Todos parados assistindo a construção da obra. Pronta a instalação, cada corpo dono do que construiu se posiciona na feitura: espetáculo ou acontecimento? Os vários mortos objetos escolhidos por cada pessoa, quando re-dispostos juntinhos, trazidos à cena, retornavam ao mundo dos vivos. Então, são observados, observáveis e viram arte (gargalhada). A perda da função assassina tudo. A-função da arte ressuscita algo?

Numa das atividades reproduzidas em Eusápia, cidade recriada para que os mortos pudessem viver, vê-se que “um barbeiro ensaboa com um pincel seco o osso dos zigomas de um ator enquanto este repassa o seu papel examinando o roteiro com as órbitas vazias”. Eu quis me aprontar fisicamente (aquecer e alongar o corpo) para caminhar através do mundo sub. Eu, ator, examinava o roteiro com as órbitas vazias enquanto a lâmina do acaso cortava a pele e sangrava os corpos preparados. O que a-prontar, se a ordem do caos estará sempre estabelecida? O cego ator se arruma pra sair a caminho do destino. Será que Édipo aquecia o corpo?

Existe natureza, naturalidade, no mundo dos mortos. Um corpo morto não representa. Sobre a morte há sempre representação. O teatro insiste incansavelmente com a morte. “É reconhecida a relação original do teatro e do culto dos mortos: os primeiros atores destacavam-se da comunidade ao desempenharem o papel dos Mortos: caracterizar-se era designar-se como um corpo ao mesmo tempo vivo e morto”. Barthes vai ao mito para encenar morte, fotografia, cena e teatro. Os objetos na caminhada são mortes. Parece haver algo de origem no trajeto margeante que fizemos. Recordações, retornos atordoam ainda. Encenamos a morte, instalamos dejetos como são, somente são. A força para não re-significar. Evita, evita, mas não dá. Evita, evita e dá.


“A incumbência de acompanhar os mortos para baixo e instalá-los no lugar desejado é conferida a uma confraria de encapuzados (...). Dizem que cada vez que descem encontram alguma mudança na Eusápia de baixo; os mortos apresentam inovações em sua cidade (...) os vivos, para não ficarem para trás, querem fazer tudo o que os encapuzados contam a respeito das novidades dos mortos. Assim, Eusápia dos vivos começou a copiar a sua própria cópia subterrânea”.


PS. Porque corpos também são acadêmicos e a cidade dos mortos é sempre universitária, na dúvida promíscua, consultar respectivamente as páginas 101 e 53 em:
CALVINO, Italo. “As cidades invisíveis”. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
BARTHES, Roland. “A câmara clara”. Tradução Júlio Castanõn Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

2 comentários:

Clóvis Domingos disse...

Willian, que texto forte e maravilhoso !!!!! É de uma poesia absurda.......Sobre os mortos, tua escrita se torna vida, tentativa de sairmos das cinzas, o simbólico tentando abandonar o real, o indizível, e assim tentamos fazer arte.

Saulo Salomão disse...

sim, é fantastico Willian, esta caminhada e perceber estes objetos soltos pela cidade e depois aos poucos vamos dando vida a eles, lançando novos olhares e fazendo uma paissagem mais saudavel destes nossos restos.... e eles voltam a ter vida