agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

quinta-feira, novembro 20, 2008

Rede colaborativa tecida por encontros e desejos

O Fórum do Obscena foi um lugar de reflexão das práticas dos pesquisadores e uma oportunidade de troca de idéias e provocações.
Cada dia com seu tema mais específico e um formato diferente.
A partir do "cruzamento" de conversas com Joyce e Idelino, sinto agora uma necessidade de uma contaminação de procedimentos ou uma fricção desses materiais, na tentativa de surgimento de novas tessituras cênico-performáticas. Necessito de um agir colaborativo para que minha pesquisa ganhe novos contornos.
Um elemento presente em todos os relatos foi o PROCESSUAL da pesquisa de cada um. As pesquisas sofreram desvios, encontros, contaminações e momentos de dúvida e falta de certezas. Não é possível reter o fluxo dos acontecimentos e agenciamentos.
Eu pude no dia do Fórum perceber que tinha abandonado alguns procedimentos interessantes e que agora sinto o desejo de recuperar alguns territórios ainda potentes. Como lotes abandonados, para mim torna-se necessário voltar a ocupá-los e rever o que está no meio da sujeira.
A escrita de Nina, o ato de riscar os corpos das mulheres, ainda me fascina muito. Ela trabalha com a questão das mulheres mortas. Quando recuperei o ato dela, na verdade eu tinha a idéia de atuar no campo da umbanda quando riscar no chão com a pemba é grafar uma presença ou evocar uma Linha de Proteção, ou ainda circunscrever um espaço circular e fechado para a magia e procedimentos de cura.
Se em Nina temos uma dramaturga que atua, penso em meu procedimento que sou um atuante num ato dramatúrgico. Os objetivos são diferentes e os universos também. Recupero a questão do "corpo emprestado" que também considero muito interessante. Fora a questão dos esgarçamentos das funções criativas dentro do Núcleo Obscena. Até onde ator, diretor e dramaturgo? Temos uma pesquisa riquíssima em nosso trabalho.

Outra reflexão : até onde a autonomia do pesquisador e até onde seu agir coletivo?
Penso que se trata de um "trânsito ininterrupto", sempre em movimento contínuo.
Temos nossas pesquisas individuais sim, mas estamos numa rede colaborativa, logo um agrupamento de trabalho e então nos provocamos, discordamos e somos, em algum lugar, responsáveis ou co-responsáveis por todas as outras pesquisas.
Afirmo isso, porque no Fórum senti-me parte de tudo o que era exposto, e mais, eu conhecia de perto todas as pesquisas, sempre procurei estar acompanhando os procedimentos, discutindo ou escrevendo minhas observações no blog. Nada do era falado soava estranho para mim, pelo contrário, eu me misturava naquilo tudo e sabia da importância dessa rede de colaboração.
Autonomia e Coletividade são dois aspectos importantes desse núcleo de pesquisa. E acredito que construímos isso juntos e de forma singular.

Idelino afirmou que para ele PROCEDIMENTOS COLABORATIVOS são: perguntas, acompanhamentos de pesquisas e disponibilidade de colocar o CORPO numa proposta do outro. Porque se cria uma rede de confiança, de diferenças, abandona-se certezas e pode-se descobrir a aprtir de dois, por exemplo, uma terceira coisa. Foi uma dificuldade assumida pelo pesquisador Marcelo Rocco. Ele acredita que esta exista devido à sua formação de diretor como figura mais importante num processo de criação. Acredito que um agir colaborativo é um aprendizado constante. E mais : confrontação e concessão são aspectos fundamentais de um fazer colaborativo.

Torna-se necessário destacar os trabalhos colaborativos do Fernando e do João, que chegaram de fora e que trazem novos olhares sobre a nossa pesquisa. Como não ser afectado pelas imagens do vídeo do Fernando ou as fotografias do João? Além de registros preciosos sobre nossos processos , são LINGUAGENS que se contaminam com nossa prática e influenciam nossas pesquisas. Então o Obscena vai aumentando essa rede colaborativa. Rede frágil, rede forte, rede dinâmica, mas acima de tudo uma REDE DE DESEJOS, ainda que obscênicos.

segunda-feira, novembro 17, 2008

o retorno ao deserto

nossa pesquisa avançou e temos amadurecido mecanismos a partir das necessidades apontadas por esse avanço. parece-me que a última mostra (ou primeiro fórum) do obscena é um resultado disso. ao optarmos por verticalizar as pesquisas e colocá-las dentro de um quadro de discussão, pudemos, nós mesmos, entendermos uma série de questões relativas às nossas próprias investigações. achei, evidente, uma tremenda lástima a minha ausência no primeiro dia de fórum, dedicado aos transgêneros. dele não poderei falar.
o segundo dia (no qual me atrasei, outra lástima) foi bem interessante e esclarecedor para mim em vários sentidos: a percepção nítida das relações intrínsecas não só entre as pesquisas expostas nesse dia, mas delas com, pelo menos, as do terceiro dia...
mas, o mais interessante, a clareza dos pesquisadores - ainda que em fase de experimentação - em relação a meios e objetivos. as questões subjacentes aos materiais desenvolvidos, o caminho de amadurecimento dos olhares. e, volto a dizer, as relações entre esses caminhos e os caminhos que se apresentaram no terceiro dia... sim, porque enquanto ouvia idelino, clóvis e joyce falar, eu, no meu vício dramatúrgico, já tecia fios de ligação entre os elementos expostos ali e aqueles que venho buscando desenvolver em minha própria investigação.
a relação entre corpo e função (o corpo que deve estar ali é o meu?), a pomba gira que, sendo entidade, é uma mulher morta que retorna, que assume outro corpo. o estranhamento entre essa posse e o corpo que a rejeita. os estados desse corpo/mulher pomba gira. os lugares de representação dessa figura...
em clóvis, a questão dos objetos despachados, a relação entre esses objetos bonecas e as bonecas objetos que estão se desenhando... as influências das caminhas performáticas sobre este material que se delineia. em joyce, a relação entre as entrevistas e os corpos/estados/figuras desenvolvidos pela lica. a questão, principalmente, da transição entre esses corpos/estados: da jovem que sonha com a quarentona que já se desiludiu.
no terceiro dia, achei muito importante a presença da marcha mundial das mulheres, tanto na oficina quanto na fala, quanto na "assitência" da exposição de bonecas realizada na vitrine.
apesar do avanço do formato (o fórum, ao invés da mostra), o qual, acredito, nos servirá de modelo para a contrapartida que realizaremos junto ao arena de cultura, creio que ainda falta muito.
obscena: agrupamento independente de pesquisa... parece-me que nos faltam ainda mecanismos próprios de autonomia, não do agrupamento, mas dos pesquisadores. falta ainda relacionar essa autonomia com a noção de coletivo: um coletivo do qual usufruo, mas, principalmente, um coletivo que construo. que depende da construção diária e constante.
somos uma rede de colaboração? essa rede implica somente nos materiais criativos, ou estamos falando de um modo de produção? como me colocar como produtor de meios para que este coletivo se estabeleça, para que ele encontre caminhos possíveis para o aprofundamento dessas investigações/materiais? para onde queremos ir?
para mim, a pergunta fundamental que cada um de nós deve se fazer é: o que eu levo nessa viagem pelo deserto?

nina caetano

domingo, novembro 02, 2008

Relato(´rio) Obscênico 02 de Novembro


















Relato (´rio) Obscênico, 20 de Outubro de 2008.



Viaduto Santa Tereza. Eu, Erica. Uma mulher de 29 anos enfim. Entrando de fato em meu retorno de saturno. Ontem, o assassinato da menina Eloá. E eu a construir minha ação/situação sem me ater a esse dado. Esse fato fatídico. O namorado que mata a namoradinha de 15 anos por não aceitar a perda. Mais uma vez estamos diante dos encantos da buceta. Não. Não estou tripudiando sobre a dor e desgraça alheia. Não mesmo. Estou apenas suscitando o valor da carne. A paranóia da carne. A posse travestida de amor, paixão.
Pois bem, cheguei eu com minha bugigangas. Está claro ainda. Vejo um caixote no passeio do parque. Vou até ele. Joyce já está a descer a rua. Faço menção para que fique próxima a mim. Estou um tanto quanto receosa. Há uma mulher mais velha a falar com uns meninos no banco, aos fundos do local onde depositei minhas peças de trabalho. Neste momento eu trabalho. Meu corpo se fortifica com a exposição na rua. Não conheço quem passa e ninguém me conhece, o anonimato que nos aproxima. Vou até um butequim e peço ao senhor que encha, por favor, o meu balde, desejo que todos tragam um. Aos poucos os obscênicos vão chegando, peço que encham seus baldes. Joyce e Nina me ajudam a desfolhar as revistas. Hoje eu enclui as imagens de revistas sobre mulheres: pornô, crochê, gravidez e nomes de bebês... cada uma pertencente a um corredor do grande ‘mercado da buceta’, sim este mesmo que fora responsável pela morte da menina Eloá. Tristeza. Aos pés da estrutura de ferro - que não faço idéia do que represente - instalo minha ação/situação: um tapete das imagens das revistas, o caixote, sedas por sobre a madeira. Os brinquedos de casinha em cor-de-rosa compõem o interior do castelo que está erguido à frente da imagem principal. Uma evolução de invólucros:à frente o castelo como uma muralha de proteção, à seguir um piso/tapete das páginas das revistas, por sobre este os móveis de plástico rosa, boneca e bonequinho, ao fundo o altar coberto com as sedas, um corpo de mulher sobre o salto, roupas que transfiguram o corpo natural, traz nas mãos assim como um buquê de noiva os objetos da rotina caseira – rodo, vassoura e pá, em miniatura. Coloco-me ali e peço aos obscênicos que destruam aquela imagem. Meu pedido é sincero, mas ainda não tem a força suficiente para passar de desejo a realização. Este é um ponto de reflexão do experimento.
A senhora que falava com os meninos que ali habitam vem para ver o que se passa. Num primeiro momento usa o escudo da religião para nos falar. Depois relaciona com a morte da menina Eloá. Ela se aproxima do meu corpo, tenta ler a faixa do ‘dia das mães’ que trago entre os dentes. Já babo. Ela levanta a calcinha sobre meus olhos, mas uma senhora branca e pequeno burguesa se intromete: _ não mexe não que ela é estudante de teatro, isso é arte. Que merda, penso eu. Quando ia conseguir a reação desejada essa estúpida me atrapalha, mas enfim, é o outro lado da moeda não é mesmo?!
A polícia passa.
Há incômodo entre os que estão a me olhar, a ‘macumba’ é sempre a culpada de nossos atos obscênicos, engraçado isso.
Continuo ali. Lica já me jogou água. Nina retirou o buque das minhas mãos, Joyce mandou água na casinha. Um rapaz muito ligeiro chutou o castelinho!!!
Continuo ali.
Frio.
Já não sinto direito os braços, estáticos. Essa sensação de inércia é muito boa. As pessoas me perguntam o que faço ali. Não há o que falar. Simplesmente estou.
Um moço de roupa social achou que a calcinha na cabeça era a que estava na buceta, foi checar minha bunda e viu a marca da minha cueca. Fez questão de salientar para todos que eu estava com os fundos protegidos apesar da tanga sobre os olhos. Escroto.
A polícia vem novamente e pára. O moço vai até eles e dedura os meninos que ali habitam. Obviamente: batida. Seguro minha ação/situação, assim não há como os policiais serem agressivos com os meninos. As pessoas se dispersam e nós também.
Sinto-me renovada.
Sinto-me envergonhada.
Sinto-me depenada.
Sinto-me inquieta.
Há que se fazer isso mais e mais.
.SARAVÁ.

sobre a potência das ações

Sexta feira 31 de outubro. Sete horas da noite. Deveria ir a uma festa da abrace ver os amigos, mas algo me instiga nessa noite. Nesse escritório em frente ao computador minha cabeça ferve de baby dolls. Como viabilizar o aprofundamento desse experimento?
Mesmo sem ter podido mostrar para o meu mais querido e arguto interlocutor esse material como era meu ardente desejo, conversamos sobre a proposta, sobre o que ele viu de cidades mortas e sobre o que já foi feito no obscena, em termos de relações com a rua. Já é um canal aberto de uma comunicação que desejo muito fortificar para o agrupamento como um todo. Mas é um caminho que é preciso que trilhemos todos no sentido do rigor e de busca de clareza de nossas ações. Para onde queremos caminhar?
Verticalizar os experimentos no sentido de uma ação clara. O que é potente no que estamos fazendo? Quais os perigos e desvios? Como condensar as propostas, engrossando esse caldo?
Vejo uma imensa potência nessa exposição de bonecas, nessa estrutura aberta que articula nossas ações em uma rede colaborativa, num diálogo que ocorre no aqui e agora, no calor de nossa sala de ensaio, a rua. Interessa-me, sobretudo, isso. Essa obra se fazendo ali, do cruzamento de nossas vozes autônomas, de nossos fluxos paralelos. Em permanente diálogo.
Por meu lado, eu devo assumir esse corpo dramaturga atuante em fluxo também de escrita. Em permanente ação obscena filtrando espectadora a paisagem da rua. Estou dentro/fora? Que lugar é esse?
Como vejo extrema potência nesse experimento que já estabelecemos, lica e eu, entre escrita e ação, entre mortas que se multiplicam pelas ruas e essa mulher objetos em suas diversas ações: numa ação concentrada, em determinado espaço. Ela nômade invasora de lojas espaços privados de consumo imediato.
Como viabilizar o aprofundamento desses experimentos?

Nina Caetano

sobre a educação da mulher

Debaixo do viaduto Santa Tereza algo acontece. São sete horas da noite e pessoas vão chegando com baldes cheios de água. Uma mulher recebe os baldes e os coloca num semicírculo, em torno de um poste. Páginas de revista. Mulheres nuas, arreganhadas. Significado de nomes para o bebê. Cuidados com a gravidez. Peças de tricô. A mulher constrói um tapete. Depois um altar. Uma nave. Sobre as páginas, miniaturas de objetos do lar: mesas, cadeiras, panelas. Tudo nesse universo do Mercado da buceta, o experimento da obscênica Erica, é rosa. Brinquedos de menina já numa construção da mulher.
Em frente ao tapete, um caixote de madeira, desses de mercado. Ela finaliza seu ritual. Sobre a roupa que veste outras roupas nas quais não cabe. Essa mulher de corpo apertado martirizado "enroupado" sobe em seu pedestal de mãe mulher, nas mãos uma vassourinha, um rodinho e uma pazinha. Brinquedos de menina. Debaixo do viaduto Santa Tereza, às sete horas da noite, sobre um caixote de feira, sobre um salto. Um altar. Ela pede que destruamos a imagem. Difícil tocar nela. Mais fácil destruir os objetos. Mas algo acontece.
Aproxima-se desse altar uma senhora de rua a quem inquieta essa imagem meio nossa senhora meio santo de terreiro com aquela calcinha cobrindo a cabeça. A senhora, Celina, diz “é coisa de quem não tem deus”. Ah, a senhora Celina... gloriosa intervenção no rumo dessa ação provocativa. Ela se incomoda, avança, toca, interroga, provoca e é provocada. Mas sua ação também incomoda as certezas de uma senhora burguesa que está tentando entender e mastigar tudo isso. Celina toca, avança a mão sobre a cabeça da atriz, a calcinha a deixando inquieta. A outra, a senhora burguesa, parece também ter ímpetos de ação que se diluem na sugestão de chamar a televisão e tentativas de ordenação “Não toca, você está atrapalhando. Não está vendo que é arte?” “A senhora podia ter pelo menos educação e me chamar num canto se queria falar comigo”, responde Celina altaneira.
Ah, gloriosa Celina... Também saio de lá provocada, desejosa.
Baby dolls.

Nina Caetano

domingo, outubro 19, 2008

Relato(´rio) Obscênico 19 de Outubro

Procedimento: “baby dool’s”
Local: Praça da Savassi, point das bonecas de belo horizonte.
Proponente: Nina e Lica
Executantes: Lica, Nina, Nêga e Joyce.
Dia 13 de outubro. Venho de uma semana de muito trampo e muito rock. Muito álcool, poucas horas de sono e ouverdose de produção. Estou lenta. Muito lenta. Minha cabeça não funciona: a buceta e sua vida no mercado de trabalho. Eu a buceta cansada e momentaneamente alienada. Sim, era assim que me sentia naquela segunda-feira, sugada. Cheguei na casa de Nina e ainda não tinha claro o quê e com o quê trabalhar... perdida. Por fim, as roupas de Nina me trouxeram um problema: roupas pequenas para meu corpo cheio. O paradoxo do corpo natural e o corpo da moda. A estética da beleza formatada, prevista e afirmada pela mídia. Mesmo assim saí para a Savassi com um nó na boca do estômago: não sabia o que fazer, sentia-me alienada do espaço para onde íamos, sentia-me inerte nessa segunda. Descemos do carro. Lica com suas sacolas, hoje em menor número. Joyce já de boneca com seus ‘clones’ de plástico numa bolsa a tira colo. A Savassi com os bares tomando as calçadas. Vitrines. Lica começa sua trajetória, logo é notada. Joyce é possível. Uma boneca seriada e possível. Uma lente e grau na realidade. Um ângulo pouco mais agudo, quase imperceptível para um distraído. Ela multiplica sua imagem e semelhança. Lica multiplica em objetos o objeto mulher domesticado. Eu tentava encontrar um ponto de incomodo, ainda estava alienada. Aos poucos a fumaça dos carros foi-me trazendo o lugar para minha respiração, atravessei a Cristóvão Colombo e juntei-me as demais frente à Melissa. Comecei a me inspirar naquelas bonecas, nas nossas e nas demais, e saquei as roupas, a maquiagem, o salto e fui-me transformando aos poucos numa desajeitada e incabível boneca. Rosa? Não conseguiu ser. Bela como as das Vitrines? Não, suas medidas não são ideais e suas roupas estão fora de moda. Exarceba na maquiagem, o ridículo daquele corpo tentando caber onde não havia como. É preciso ser magra. Seriada para caber nas roupas das Vitrines. As três agora desfilam e vez em quando deitam-se no chão para que nina teça suas mulheres mortas. Comecei a perceber uma certa idiotice naquela minha situação. Gerou-se em mim uma alegria imbecil, esse estado creio que foi um entorpecimento causado pelas inúmeras vitrines e a mira das câmeras. Neste procedimento decidimos assumir a câmera e nos relacionar com ela. Eu sorria numa felicidade idiota. Um sorriso vazio de senso crítico e impotente de qualquer natureza anárquica, mas que por sua repetição possibilitou perceber organicamente o que o espetáculo da cultura do consumo nos causa. Vejo Túlio com um sorvete da Mac nas mãos, chamo-o, ele resiste, por fim cede. Vem a meu encontro e oferece o sorvete, diz que quer trocar e eu pergunto pelo o quê, ele sorri e não responde... Pergunta se vou sempre ali e respondo que só vou quando quero ficar bonita, uma mocinha nos observa e eu direciono a mesma pergunta a ela, sua resposta é seca:_não tenho com o que me divertir aqui porque não tenho acesso às lojas de grife... Fiquei a me perguntar o que ela fazia ali, mas ela se foi.
Três locais foram mais potentes: porta da Mac, porta da Loja de Enxovais e porta da loja Rede. Nesta última quase fomos contratadas pelo gerente para promover a loja de comésticos... Eu fiquei a imitar a moça do banner da porta com seus lábios sensuais prontos a serem consumidos.
Bem, três bonecas foram construídas: a noiva; a boneca seriada; a boneca que não cabe.
É isto.
.SARAVÁ.

Relato(´rio) Obscênico 19 de Outubro


Escuta Errante – Clóvis ouve mulheres no banheiro do Marília.
Dia 29/09 – chego no Marília e Clóvis já está quase pronto e extremamente ansioso. Natural. Eu estou à seus serviços hoje. Irei buscar mulheres dispostas a se abrir para um estranho. Falar de suas mazelas, medos, derrotas, fracassos amorosos, enfim...
Saio pela Alfredo Balena, fim de expediente, muitas mulheres de branco – área hospitalar. Vejo um casal de adolescente, duas meninas de mãos dadas. Aquilo me chamou atenção. Comecei a segui-las. A imagem era bela e sedutora, duas meninas em pleno exercício de suas liberdades sexuais. Século 21. Será? Enfim, continuei a observá-las. Conversavam como as demais de suas idades. Parei para comprar uma porcaria para comer e deixei que passassem na minha frente. Continuei com elas até a Álvares Cabral. Maleta! Pensei. Lá devo esbarrar com alguma fodida. Isso me veio a mente. Das adolescente vivas queria agora uma mulher detonada: Maleta! Entrei. Cheio. Subo a rampa do Lucas e paro em frente ao Chock Chock. Um casal na mesa a frente esquerda em chama antenção. Sempre estão por ali, mas não são namorados. Ela, negra magra esguia e com movimentos sinuosos; ele, negro seco cabeludo malemolente e belo. Peço licença, sent0-me, estou ansiosa. São pessoas fortes, mas do rock. O que nos confere certa familiaridade. Ela tem o rosto marcado e é forte e bela a seu modo. Muito dor no olhar, são profundos e negros. Sua fala é certeira e cheia de gírias e malandragens. É mais masculina. Assertiva. Explico meio formalmente qual é meu objetivo ali. Eles se espantam e ela por fim começa já o processo de confissão. Eu não sei o que fazer. Escuto, mas vou ao mesmo tempo fisgando-a para irmos o mais rápido possível para o teatro, tive medo de que se esvazia-se ali no buteco enquanto se enchia de álcool. Onde mais encontramos tão concentrado num mesmo metro quadrado tantos corações partidos do nos butecos da vida. Todas as dores de cutuvelo são curadas numa boa bebedeira, mesmo que esta seja diária. Ao chegarmos no Marília, Clóvis escutava Lica. Minha convidada se impacientou. O rock a solicitava. Seu amigo me ajudou a mantê-la ali, sentada no porão a esperar para se confessar. Igreja? Não, mas remete.
Ao fim, abraçamo-nos e ficamos a fincar o pé no chão, pois a dor é muita e ela nos afeta.
FIM

Relato(´rio) Obscênico 19 de Outubro

Procedimento: ‘cidade das mortas’ – Lica e Nina
Praça Sete
Lica já havia abandonado a ‘noiva’ quando cheguei. Estavam na rua rio de janeiro. Mulher coisa, vaca, maravilha. Muitas sacolas de loja, muita embalagem de plástico, descartáveis, potes, uma infinidade de apetrechos domésticos e domesticantes. Vez ou outra esta deitava-se no chão e Nina escrevia a mulher morta que ali jazia. Seu inventário. Seu testamento. Sua condição sócio econômico e cultural. Nossas graças e desgraças.
Eu mantive meu olhar mediado pelo vídeo e câmera do celular. Por isso fiquei igualada ao público. Muitas pessoas filmam e fotografam a ação das pesquisadoras, é bom desfrutar desse voyeurismo. Os homens lêem e se excitam. A carne é muito mais forte que o verbo. Certamente. Mas Nina persiste e Lica também. Carne e verbo em exercício de comunhão.
Será que os homens entendem? Será que eles associam os objetos domésticos acoplados ao corpo dela com a domesticação das mulheres ou eles acham que uma fantasia de um protesto feminista?
Algumas mulheres repreendem a ação. Outras ficam curiosas e se aproximam. Uma na praça sete interferiu todo o tempo falando com Lica como se ela estivesse fazendo um programa de TV e fosse seus 15m de fama... Nina a convidou para deitar-se, mas mesmo muito falante não teve coragem de dar seu corpo à prova. Verbo e carne em total desarmonia.
FIM

Relato(´rio) Obscênico 19 de Outubro



Relatos Obscênicos, últimos dias de setembro e 13 de outubro.
Procedimento: CLASSIFICADOS
Marcelo Rocco, proponente.
Saulo e Didi, executantes.
O universo gay. A transexualidade. A prostituição. As drogas. O álcool. O submundo. O preço das coisas e das pessoas coisificadas: está tudo nos classificados.
Seres humanos à venda. E no momento final, quando Saulo e Didi já não podiam e tinham condições de arcar com mais nenhuma representação desponta o humano. Numa ação a principio sórdida mas extremamente forte e rica: Didi de pernas para o alto e bunda arreganhada e Saulo a entuchar em seu cu a ponta do revolver: do espetáculo à confissão da memória familiar, da opressão paterna à opressão do outro em cena, o jogo que se estabelece enfim e os coloca no x da questão: quem vai comer o cu de quem? Porque no final é justamente o que fica: quem fodeu e quem foi fodido. Neste momento vejo potente a questão que se desponta na pesquisa de Marcelo. Lembro-me do tcc – boate lilás – momentos potentes como estes havia: o sorteio da putinha pelo menor preço oferecido; a bunda masculina a rebolar e os homens heteros a babar... rupturas em forma de alegoria. A carnavalização da cultura brasileira. Devemos sempre festejar mesmo sendo fodidos. Por isso ressalto essa passagem do procedimento, havia em Didi a alegria estúpida de ser fodido, a crueldade máxima: a idiotice estampada em nossos corpos carentes de afeto e alienados de si que mesmo ao serem ‘fodidos e mal pagos’ saem gabando-se, pois não há mais contato além deste e resta-nos a fudeção.
O que resta a prostituta que empina o rabo para a porta do quarto à espera de algum peão que a coma para que ela dê de comer aos filhos?
O que resta a um transexual num país como o nosso? Há assistência médica/psicológica digna?
O que resta às mães solteiras?
Estamos todos com o cano da arma no cu e não notamos.
Continuamos rindo idiotamente relevando o urgente.
FIM








sexta-feira, outubro 17, 2008

ESCRITO TARDIO.RELEXÃO SEMPRE EM TEMPO

Segunda-Feira. Procedimento do Marcelo. Porão. Atuam Saulo e Didi.

RELATO A PARTIR DA PROVOCAÇÃO DA ERICA – 22/09/08
Despachando textos

Qual é a sua questão, enquanto pessoa-criador? O que você está querendo discutir aí?
Toda vez que esta “provocação” vêm á tona, de alguma forma nos deixa a todos, em situação desconfortável. Ao passo que nos faz buscar o ponto de partida do nosso trabalho e rever o percurso e o que tem prevalecido.
Ontem, a provocação (com tom sempre exagerado e austero bem característico e que dá margem sempre a algo além da própria provocação) da Erica mediante o procedimento do Marcelo, certamente fez cada um revisitar o próprio umbigo. E, naquele exato instante, refletir, criticar, provocar a própria criação que vem desenvolvendo.
Acho necessário, ao mesmo tempo que cruel e delimitador. Me pergunto se querer “definir” não é também a ânsia de manipular um trabalho que precisa ser refletido num resultado e não necessariamente num produto. Ou, não será o momento de dizer que estamos no final e precisamos definir, assim mesmo, como está? Mesmo compreendendo que a questão levantada refere-se á questão da “pessoa criadora”. E não do material em si. Embora estas coisas se confundam.
Eu, particularmente, nem de longe consigo encerrar o trabalho iniciado. É possível fechar? Sim. Obter resultado algum? Sim.Mas, não tenho certezas alguma, já que outras questões vão surgindo e transformando as idéias e ou sugestões iniciais.
Inicialmente queria trabalhar a partir da Pomba Gira e com os seus elementos de identificação numa gira. Mesmo sem saber, inicialmente, como.A medida em que fui “explorando”-num sentido mais imagético e menos prático -, possibilidades para achar um ponto interessante, concluí que seria pertinente dispor mulheres com estes elementos. Alguma leituras sobre a entidade, sobre a formação da mulher, desde o édem, me fizeram considerar o confronto entre os opostos.
Destruir imagens do feminino construídas na mulher mediante a aquisição no corpo, de comportamentos alheios á estas imagens.
Sobretudo, um
comportamento
“livre” e “primitivo”.
De vermelho e preto .Pés descalços e uma taça á mão. Da Pomba Gira ficou estes objetos característicos e a abertura para uma intervenção livre no cotidiano da cidade.Embora, aparentemente simples, tenho tido dificuldade em encontrar mulheres que queiram submeter-se a tal procedimento. A intervir de forma tão despojada e em relação com o espaço urbano.
As mulheres acham até bacana o convite.Ficam empolgadas. Num primeiro momento afirmam não saber o que de fato é uma Pomba Gira.Num segundo, retornam e questionam sobre o andar descalças.
Num terceiro, sobre a Pomba Gira, sua energia.Num quarto momento, me mandam uma mensagem adiando para outro dia e num quinto, nunca mais me ligam.
O medo que se instaura ao falar de Pomba Gira é geral.Mesmo sem conhecer o que é e como é, e talvez por isto,torna-se inviável uma disponibilidade para o procedimento: colocar-se neste, como mulher.
E uma coisa é evidente, as mulheres não sabem do que se trata em essência, mas, dispensam um temor.Neste sentido,minhas reflexões parece que ganham sentido.Se a virgem é espelho , portanto, da imagem da mulher social ideal, a Pomba Gira é a negação disto. A cultura da negação está imposta e tem grande influência, percebe-se.O demônio sempre esteve pintado de vermelho e preto, razão pela qual uso tais cores, assim como a “puta” passou para a margem, quando este modelo ideal, pautado na religião, se instaurou.
Se o Brasil ainda é o maior país católico e todos fomos criados, direta ou indiretamente sobre os conceitos da moral cristã,tudo que vier contra isto, não será consciente ou inconscientemente negado? Em nós, por nós?
Outra questão que me suscitou e provoca: quem deveria negar quem: a Pomba Gira a mulher? Ou a mulher a Pomba Gira? Será isto procedimento prático ou pesquisa teórica?
O preconceito é imenso e desafiador.Desenvolver um material palpável que aborde todas estas questões surgidas, vejo como uma longa estrada a percorrer, a pé e descalço.
Porém, voltar sempre a estas questões, é edificante por que nos obriga a deixar um pouco mais claro o nosso desejo. E estar diante de uma provocação como esta, da Erica, nos torna mais excitados a ponto de buscar conteúdos mais esclarecedores e fazer emergir mais perguntas.
Para concluir,
mais que atrizes,
quero mulheres preservando todos os seus atributos femininos,
suas ideologias, vontades, desejos, sua história, seus medos, sua coragem, sua consciência, para se submeterem a uma intervenção nos espaços urbanos,
com liberdade, travestidas com os adereços e trajes concernentes ao universo da Pomba Gira, sem representá-la
O que isto provoca em você enquanto mulher?
O que esta intervenção provoca no outro? E no espaço?
consegue se sustentar, nesta intervenção á deriva?Consegue ser?

quarta-feira, outubro 15, 2008

Bonecas na Savassi : um sonho Imperfeito.

Sonho Perfeito. Um coração. Loja de enxovais na Savassi. Lugar para moças sérias e casadoiras. A mulher família tradição e propriedade. É noite. Assisto uma exposição do lado de fora da loja: mulheres bonecas expondo seus mundinhos fakes e fabricados pela sociedade do Pai, da mídia e da religião. São manequins de alguma grife de roupas femininas? Não, são mulheres e artistas obscenas e obscênicas caricaturizando esse feminino deteriorado e glamurizado.
No ponto de ônibus em frente vejo pessoas incomadadas , umas riem, outras perguntam se é teatro ou show e existem aquelas que se irritam por serem interrompidas em seu cotidiano.
O fato é que algo de ESTRANHO INVADE O ESPAÇO URBANO. Um procedimento na fronteira.
Joyce, a boneca seriada. Lica, a noiva feliz e dona de casa coisificada. Érica, a mulher corpo-propaganda, a gostosa, o corpão que vende, anuncia e seduz. E Nina e a escrita que corta, denuncia, desvela, o grito escrito nas ruas e passeios da cidade.
Uma imagem avassaladora: mulheres mortas de frente a loja de enxovais. Mas o que significa isso?Mulheres embalagem e espetaculares. Muitas fotos, muitas imagens e viva o mundo da espetacularidade!!!!!!!!!

Um procedimento agressivo, debochado e muito potente. O tempo é outro aliado. O tempo não-representacional, mas o tempo de se configurarem IMAGENS, ESCULTURAS, IDÉIAS E PROVOCAÇÕES.
Vale investigar a potência desses corpos, o que querem gritar e denunciar?
Um procedimento que se compõe com várias pesquisas e há um encontro de forças potentes.
Um quadro vivo. Teatro Imagem. Corpocidade.
No final mulheres mortas de frente a um Café e ninguém olha e se incomoda. Estamos tão midiatizados que tudo é teatro, arte e espetáculo. Não há uma interrupção. A espetacularidade tornou-se companheira de todos nós.............

terça-feira, outubro 14, 2008

Brincando de bonecas


queridas obscênicas!
vamos planejar nossa ação de segunda? como já disse, a idéia é nos encontrarmos às cinco em minha casa, para daqui sairmos para a savassi.
temos uma dramaturga e três atrizes.
lica irá trabalhar a partir das figuras que está desenvolvendo. sugiro, lica (não sei o que você pensa), experimentar a noiva nesse dia. com o carrinho (ou mesmo com as sacolas), repleto de objetos do universo feminino. eu destacaria os de beleza, mais do que os de casa.
que em momentos específicos, você montasse sua instalação de vaidades, talvez buscar ações dentro desse contexto de formatar um corpo boneca noiva quer casar...
penso que para a nega pode ser interessante trabalhar com a educação da mulher, a partir dos objetos de infância: os brinquedos de cozinha boneca sabe cozinhar...
joyce, não sei o que você está pensando nem por onde está passando a sua pesquisa. eu tinha uma viagem, a partir de uma reportagem que lica trouxe das mães japonesas (as filhas são suas reproduções exatas), de você buscar algo nesse sentido. de criar um duplo com a erica, ou ser boneca dela.
ou ainda você criar um duplo para você: uma boneca joyce com quem você brinca. outra possibilidade, é atacar o estereótipo da mulata brinquedo sexual masculino, exagerando suas qualidades traços de mulata, talvez uma mulher sanduíche onde possamos escrever suas aptidões físicas. podemos, inclusive, usar o registro para intensificar isso. uma câmera que te siga, por exemplo, o tempo todo e vc faça tudo para ela. atacar os estereótipos de mulher melancia, mulher filé.
eu vou interagir com as instalações das três. não sei se vocês ficarão juntas ou separadas, mas penso que próximas é necessário, para configurar um único acontecimento: a exposição. como se fossem nichos, prateleiras ou vitrines. podemos andar com a exposição pelos quatro cantos da praça e cercanias.
vou trabalhar com escrita em papel de propagandas e com o giz no chão. vou querer que, às vezes, vocês se deitem e eu possa desenhar seus corpos no chão e escrever. o trabalho demandará um tempo. podemos alternar suas ações e minhas escritas no chão. enquanto desenho uma, para escrever a partir dela, as outras continuam em ação. podemos também alternar a isso, uma ação conjunta. os três corpos deitados no chão.
enfim, essas são as questões que estou pensando...
e pra vocês?

Um email. Minha tentativa de organizar uma proposta ainda muito incipiente. Algo me interessa muito na idéia de uma exposição de bonecas. Bonecas domesticadas pela tv. Expor a boneca das outras mulheres/transeuntes por meio dessas que proponho.

Da experiência concreta, realizada ontem, dia 13 de outubro (não foi por acaso a proximidade com o dia das crianças), muitas coisas interessantes e potentes surgiram. Os corpos das mulheres mortas (o conjunto aumenta a potência disso). Aliás, o conjunto é bem favorável. Noções de invasão. As bonecas da Joyce, elas em série. Ela, mais uma. Reprodução de estereótipos, de corpos manequins de vitrine. Joyce escultura. O corpo martirizado de Erica, apertado pelas roupas pequenas demais e pelo salto alto. Sua felicidade idiota. As possibilidades de exploração de uma espetacularização exacerbada: o fio da navalha. Como quebrar o conforto/comodidade que ela proporciona, ordenando e explicando, tornando aceitáveis aqueles corpos/ações/invasão?
Muitas questões surgiram: como garantir essa ruptura do conforto que as câmeras proporcionam. Exacerbar mais ainda: invasão de paparazzi? A necessidade de estudo desse espaço a ser ocupado. E de outros espaços possíveis. O que queremos do espaço, o que dele é necessário?
Um estudo dos corpos: a hipérbole dos corpos? O corpo cotidiano? Os estados alterados: felicidade/martírio. Desfazimento dos corpos. O estudo das ações e relações: entre nós e de cada uma. Experimentar as variações de tempo e ritmo. As pausas. A relação com a escrita.
Pensar um roteiro de ações? Também ficou a necessidade de maior organização e planejamento. Definir mais claramente os objetivos individuais e as possibilidades de rede.
PROPONHO ESSA AÇÃO COMO UMA ESTRUTURA DE DIÁLOGO COM OS MATERIAIS DAS ATUANTES. NÃO QUERO CORPOS AO MEU SERVIÇO. PROPONHO O ESTABELECIMENTO DE UM DIÁLOGO EM TRABALHO. DE UMA ESCUTA DOS CORPOS E DAS POSSIBILIDADES DE AÇÃO DO OUTRO E COM O OUTRO. A PREPARAÇÃO SE FAZ NECESSÁRIA.

Nina Caetano
(em tempo: as fotos que ilustram esse relato são de joão alberto de azevedo)

sexta-feira, outubro 10, 2008

Vozes errantes: escutas de dores femininas nos prostíbulos da cidade

Relatos de um procedimento. Prossigo com a escuta de dores femininas. Marcelo me leva aos puteiros da cidade e descubro um universo de violência e anti-erotismo. Na rua São Paulo passeio por vários prostíbulos e vejo exploração sexual, miséria e o feminino deteriorado e reduzido a um corpo a ser consumido.
Para conseguir a escuta de uma mulher pago dez reais, o equivalente a um programa sexual.
Deitado na cama de Rosângela escuto sua história de dor e abandono: a prostituição como única saída para a sobrevivência. Ela diz precisar do dinheiro para criar o filho que sabe da vida da mãe. Escuto um relato de prostituta e provoco a mulher pedindo uma história mais subjetiva. Então escuto um relato que fala da perda da mãe aos sete anos de idade, o sofrimento com a família que a humilhava e o sonho e a possibilidade de fazer uma festa de aniversário trinta anos depois.
Mais ainda assim sinto falta de tempo e de uma escuta e uma fala mais efetivas. Mas escuta pede tempo e relação de confiança e isso é impossível num primeiro contato e numa noite de um lugar onde o movimento é grande e "time is money"...

Fico incomodado e não gosto do procedimento, acho que ele não funciona e o ambiente me agride de alguma forma. Ter que pagar ainda me remte à idéia de tratar o Outro como mercadoria, mesmo sabendo que se trata de um trabalho.
Percebi também que é um lugar onde pouco se fala e muito se faz. Ou então as palavras são sempre vazias e não dão conta da realidade.
É uma atmosfera árida e anti-erótica onde humanidade e respeito passam longe.
Assumo minha incompetência de atuar nesses lugares, talvez isso agrida de alguma forma meus valores. Pretendo escutar as histórias no Teatro mesmo.
O que vivenciei nesses lugares foi uma dor mascarada e negada até mesmo por uma questão de sobrevivência humana. Ou se sofre ou se trabalha, não há saída. A dor moral é grande, mas o "teatro do desejo" é que impera e o importante é gozar num corpo feminino mesmo sabendo que aquela mulher só deseja é o dinheiro.

quinta-feira, outubro 09, 2008

o anti erótico de Clóvis

Clóvis e eu fomos à Guaicurus procurando por uma mulher que pudesse retratar a dor, modificando sua estrutura de trabalho habitual de venda de sexo por venda de dor.
Era a primeira vez que Clóvis adentrava naquele sub-super mundo. Recheado de homens, gorjetas e dor. "Qual dor?" uma mulher nos perguntou. "A dor Moral?", esta é a pior.
Conseguimos, após resistências de algumas mulheres, uma entrevistada. entramos em seu quarto que cheirava suor e alvejante.
Vestida de calcinha e sutiã, parecia não estar tão à vontade mais, como se estivesse nua, estivéssemos a desnudando.
Sorria com timidez tentando esconder alguns dentes perdidos pelo caminho.Seu nome: Rosângela (talvez um pseudônimo). Nos retratou que tem um filho de 13 anos e ele sabe... falava isto com se fosse uma criminosa, algo que a fizesse se esconder embaixo da terra.
Falou diversas vezes que detestava aquele lugar. Queria embora. Estava presa... presa a quê? R$600,00 que ganhava mensalmente. Presa à memória da mãe que batia com diversos instrumentos em sua cabeça. Presa ao ex-macho que a desprezava, Presa à uma idéia deturpada de família. Presa à capinagem da roça na infância.
Disse que seu último aniversário (tinha 37 anos de idade)foi aos 7 anos , e ela juntou dinheiro, advindo de gorjetas de 10,00 reais por programa, para fazer uma grande festa de aniversário. durou dois dias. Era seu aniversário. Ninguém tiraria isto dela. Até sorriu mostrando a falta dos dentes. Sua voz ficou macia ao falar desta gota de felicidade, feito de minúsculos momentos.
Agradecemos. Fomos embora, e Clóvis, ainda um pouco inerte e abalado me falou do anti erótico, daquilo que finge ser, da imagem das putas tristes disfarçadas com gliter, batom, e preversidade.

MOSTRA OBSCÊNICA MÊS DE OUTUBRO


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terça-feira, outubro 07, 2008

Qual esse corpo?



A trajetória é longa entre o desejo de uma ação e seu sucesso. Derrida associa o conceito de performatividade à sua relação com o sucesso da ação. Logo, um teatro performativo deve não só agir, mas também não fracassar no seu intento.
Cigana. Pomba gira. Mulher livre, voraz realizadora dos seus desejos. Como ação que se propõe não representacional: buscar esse estado em mim e sair pronta para fazer o que eu quisesse. O que eu quero e o que ela quer? Não representar. Usar os elementos: preto e vermelho, colares, anéis, taça e champagne nas mãos. Sair descalça.
Prontifiquei-me a me colocar nessa ação, experimento proposto por Idelino. Deveria percorrer a N. Sra. do Carmo e, depois, seguindo o trajeto que quisesse, chegar ao Shopping Cidade, onde eu deveria entrar. Devo dizer que não sou atriz. Sou dramaturga.
Lá fui eu com esse corpo de cigana: champagne na mão. Não foi fácil bancar essa mulher pelas ruas vizinhas à minha casa. Resolvi explorar algumas ações/relações com os espaços pelos quais passava. Mas o espírito era de coelho e meu corpo exposto me dava medo. Passei por uma vitrine cheia de sapatos de salto. Um vermelho me chamou a atenção. Do lado de fora, comecei a “experimentá-lo” no meu pé até assumir esse andar. Desci a rua calçando o meu salto descalço.
Alguns poucos momentos me senti sincera: na loja em que a moça me deixou experimentar um spray de cheiro de morango e saí dali tão perfumada. No vento que sobe a grade levantando minha saia.
As vitrines de salto alto me davam uma motivação: a dramaturga adentrando esse corpo de atriz (?) atuante. Colocava o corpo de outras mulheres dentro do meu. Mesmo assim, poucos momentos de sinceridade. Resolvi embarcar para o centro. 9106. Tomei o ônibus e meus companheiros – Lica e Idelino – ficaram para trás. Conforme o combinado, rumei para o Shopping Cidade. Mas antes, passei por outras lojas. C&A: entrei na loja portando minha taça de champagne. As bijuterias logo me atraíram. Grandes pulseiras de plástico. Vermelhas. Pretas. Brancas. Colares de contas ou de formas plastificadas coloridas. Experimentei vários. Experimentei lenços.
Rumo ao Shopping Cidade. Respiro fundo e entro. Logo um homem de preto vem atrás de mim. É proibido entrar no shopping descalça. Norma interna. Quero ver a norma. Aquilo atrapalha o homem de preto. Eles se comunicam com seus aparelhos. Uma vitrine de rosas vermelhas me atrai. Começo a passear no shopping enquanto aguardo a norma. Sorvete de casquinha. A norma não vem, mas vem o tenente da polícia militar. Chefe da segurança. Sairei assim que me mostrarem a norma. Até lá, me permitirei passear descalça, obrigada. Por mais inconveniente que a minha conduta possa parecer. Ou minha roupa de cigana puta inadequada. O bom é que em tempos de exposição de bonecas filés melancias samambaias na TV fica difícil considerar qualquer vestimenta imoral. Mais imorais são a minha liberdade absoluta e minha consciência dela. Meu corpo agora encontra sua sinceridade e quer desfilar nessa vitrine onde outros corpos se enquadram. Mesmo que meus pés descalços não caibam na norma invisível e que homens de preto me sigam.

Ótimo. Adoro homens de preto.

Nina Caetano

domingo, outubro 05, 2008

DIARIO DE UMA ESPERA SILENCIOSA.

Mais uma vez escutarei narrativas reais de dores e fracassos femininos no Marilia.
Aqui se inicia um relato de uma espera.

19:00hs. Estou aqui te esperando. Visto branco e estou sem sapatos.

19:15hs. Erica pega comigo os anuncios do procedimento e vai tentar buscar vozes femininas para uma escuta silenciosa. Hoje vou pedir permissao para gravar os relatos.

19:30hs. Continuo sozinho aqui. Eu espero. Acho que vou ler um pequeno livro sobre pomba gira que o Idelino me emprestou.....

20:00hs. Muito sozinho aqui. Espero. Talvez hoje nao escutarei nada. Pego um livro da Adelia Prado para ler onde uma mulher de meia idade fala de suas crises existenciais. Sera uma forma de escuta? Vou escutar Felipa essa noite.

20:15hs. Nada, nada e nada. Escuto somente os sons da avenida movimentada. Agora escuto mulheres rindo e contando fatos estranhos. Talvez sofrer esteja fora de moda.

20:25hs. Saulo aparece e pede para ser escutado. Claro que sim. Homem tambem tem mulher nas entranhas.

20:30hs. Saulo falou pouco. Tentou falar...falou? Sera que a Lica vem se confessar?

20:40hs. A Lica vai falar agora.......

21:20hs. Estou atravessado pela fala de Lica. Uma escuta preciosa aconteceu. Lica toca fundo nos sentimentos e faz musica. A mulher nao tem medo de tocar em todas as teclas do piano.

21:21hs. Erica traz uma mulher para falar, foi achada no Maleta. Escuto. Muita dor pede poucas palavras ou melhor, elas faltam e nao conseguem dar conta do real. Fala, mulher. Perfumo os pulsos dela e afirmo que a dor perfuma a vida.

21:27hs. Fim do trabalho. Erica me aperta e conforta. Foi bom escutar essas pessoas. Saulo traz o homem para a mulher que habita esse procedimento. A espera feminina. A espera do feminino.

terça-feira, setembro 30, 2008

setembro das flores




O mês de setembro transcorreu em meio a mostras semanais: formato bem mais interessante, que atende à processualidade da pesquisa. Explico: antes vínhamos fechando os procedimentos/experimentos semanais no âmbito interno, restrito aos pesquisadores do obscena, com eventuais excursões de um e outro em suas aventuras cênicas. Só abríamos o trabalho para “visitação” pública nas mostras trimestrais: tal ação acabava por ter um aspecto de apresentação.
Com a abertura dos trabalhos de investigação ocorridos durante a semana, ou seja, no dia-a-dia da experimentação, da investigação em ação de cada um de nós, conseguimos, parece-me, atingir o caráter processual inerente à pesquisa que estamos nos propondo a realizar. Falo dos trabalhos públicos que ocorreram nos dias 08, 15, 22 e 29.
Nos dias 15 e 29, realizamos, eu e Lica, mais algumas investigações em torno do experimento que intitulamos cidade das mortas. No dia 15, já registrado em relato anterior, eu e lica nos encontramos mais cedo na casa dela, de onde saímos por volta das cinco e meia da tarde. Como já havíamos experimentado dias à tardinha, início da noite e gostado das possibilidades, optamos por começar o trabalho mais cedo do que o marcado para o encontro dos obscênicos. Nesse dia, novamente trabalhamos na praça da estação e na praça sete. Na praça da estação comecei a filmar a lica, ação logo complementada por Fernando. Também não demorou muito e apareceu a guarda municipal. Evento, tem que ter autorização. Como tem que ter autorização a palavra escrita dano ao patrimônio público pichação em giz. A palavra escrita, o registro, são marcas inegáveis de uma subversão da ordem. São marcas do perigo.
Na praça sete a escrita sujeita ao giz. Aqui, o chão é liso e possível. Praça reformada para descentralizar o centro, esse olho do furacão. Aqui, o fluxo de passantes nos engole e esconde. O centro da cidade é um circo e nele faremos o círculo, percorrendo todos os monumentos dessa praça para terminar no monumento MacDonald´s, com seu imenso M. mulher.
Quem é essa mulher? Não é possível explicar, é necessário construir.
No âmbito desse trabalho, a minha questão principal se relaciona com a prática de dramaturgia que tenho proposto. Dramaturgia do instante. Coincidindo com a investigação dessa escrita no espaço da ação, vários foram os encontros felizes ocorridos nesse mês das flores e tempestades de granizos: as discussões no projeto laboratório acerca do conceito de intervenção urbana, a presença marcante de Antônio Araújo, a tese de José da Costa sobre as escrituras cênico-dramatúrgicas conjugadas; que acabaram por me colocar diversas questões em relação a essa pesquisa: da relação com o espectador/transeunte, das possíveis formas de inscrição textual, do lugar do “dramaturgo”, do texto como elemento material e da dramaturgia como escritura/leitura. E ainda: a mim caberá o todo? Tais questões apareceram mais fortes após a experiência do dia 29.
Savassi. Dia 29 de setembro. Dessa vez, saímos do Sion. Lica propôs experimentar sonoridades e corporalidades animais. A proposta hoje era percorrer as lojas, vitrines. Interagir com o ambiente consumo. Sempre que possível – o chão ali não
ajuda muito – deixaríamos algumas mulheres mortas pelo chão. Ali, recuperei novamente a escrita no papel de propaganda. Escrita cartaz.
Mas não nos apressemos. Percorramos o percurso. Avenida Nossa Senhora do Carmo. Os carros em alta velocidade e os pedestres perplexos. Aqui o chão é liso. Bêbados nos tiram a concentração. Esse corpo mulher sacolas atravessa a avenida. Olha ela na passarela.
Esse corpo mulher sacolas perambula pelas lojas do Pátio Savassi. Gravar não pode. Só o celular democrático de uso geral. Todo mundo tem câmera Bluetooth mp3. as caras nas câmeras redes de TV. A câmera caracteriza normaliza o acontecido. Este se torna evento. Teatro arte propaganda marketing novela das oito. Filme. No mundo do mercado o mercado explica tudo? É necessário criar o atrito. O estranhamento. Essa mulher produzirá sonoridades corporalidades animais.
Por que você está vestida assim? E você? Por que a prancha escova progressiva inteligente jeans da moda o roxo bata pode. Por que o sexo forçado marido namorado um tapinha não dói. Homem faz sexo mulher faz amor lipoaspiração drenagem linfática. Tintura. Depilação epilação hidratação cauterização ballayage plástica botox silicone. Não é possível explicar, desculpe o transtorno. Estamos trabalhando para você.
Descemos a rua em atrito com as lojas que encontramos pelo caminho. Drogaria Araújo. A mulher super vaca maravilha rebola reboa seu sino nos corredores vidros prateleiras produtos. A ação é sutil. O som na drogaria. A pose em frente às lojas da Rede. Em frente à Travessa, o diálogo com a estátua da mulher escritora. A prateleira de bonecas da loja de brinquedos. Aqui, as escritas se multiplicam, geradas pelo atrito contato com esses mundos. Materiais. A prateleira rosa. O banquinho branco em frente aos contos de fadas da melissa. A estátua escritora e a boneca de papel da propaganda de desodorante.
Mulher. Uma obra em construção.
Quem é a obra de quem?
Filé. Delícia. Gostosa. Carne de primeira. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca jaca galinha piranha. Mulher melancia. Mulher da vida. Mulher da zona. Mulher da comédia. Mulher à toa. Mulher. A esposa em relação ao marido. Moça que atingiu a puberdade. Samy. 18 aninhos. Morena gostosa. Safada, sapeca como você gosta. 100% completa. Sexo anal total. 69 gostoso. Foto original sem retoque. Gosto de beijar. Amar. Cuidar. Transar. Mesmo sem vontade. Esquecer. Perdoar. Compreender. Sujeitar. Sacrificar. Esquecer. Esquecer. Embalar. Adestrar. Ensinar. Mesmo sem vontade. Educar. Amamentar. Brincar. Parir. Amar. Limpar. Passar. Jogar no rio. Na privada. Na esquina. Na esquina.
Desculpe o transtorno estamos trabalhando para você. Uma obra em construção. Barbies. Pollys. Princess all globe. Bonecas domesticadas pela TV. Hidratantes. Desodorantes. Perfex. Batom. Antiaderente. Drenagem linfática Jet bronze endermologia com arte é diet light in out enterrada menina de 14 anos encontrada morta e estuprada. Metida. Fodida. Arregaçada. Como você gosta.
Cerveja. Boa. Gostosa. Gelada.
Chega de fruta. Homem gosta é de comer carne.

Nina Caetano
(fotos de joão alberto de azevedo)

terça-feira, setembro 23, 2008

SOBRE DOIS PROCEDIMENTOS DE SETEMBRO

Segunda-feira de procedimentos nas ruas da cidade. Chego na Praça Sete à procura dos pesquisadores e me chama a atenção um pequeno grupo de pessoas lendo palavras e textos escritos dentro de desenhos e contornos de mulheres. Ah, sim, pensei......são as MULHERES MORTAS de Nina e Lica!!!


Logo depois chega Didi, quase nu, vagando perdido em meio à multidão que atravessa a praça a noite. Logo percebo os olhares incomodados das pessoas. Didi vai até um contorno de uma mulher morta e se deita ali, mas configura um novo espaço: está de óculos escuros e toma sol na noite da praça. Mais confusão e seu corpo desnudo e obsceno cria um acontecimento no centro da cidade. Um procedimento se alimenta do outro, o problematiza ou o desterritorializa.

Há gente que pára, gente que ri e gente que começa a xingar e reclamar dessa gente que "corrompe" as ruas de Belo Horizonte. Sou testemunha de um trabalho de alto risco e muita exposição. Realmente chego a ficar alterado e com as mãos frias.....

E logo depois vem atravessando a Afonso Pena uma mulher "absurda" de tão estranha, carnavalesca, objetada de coisas de casa e causando muita curiosidade entre os transeuntes. É Lica e sua caricatura dessa mulher domesticada que tem seu corpo violentado pelas boas maneiras de uma mulher culturalizada. Nina vem sempre junto e assim em "colaboração" elas rabiscam o corpo concreto da cidade e param o fluxo nas ruas.

Lica tem um trabalho mais teatral, ela parte de uma constatação do cotidiano real e vai para uma tentativa de ficcionalização dessa mulher. Já Didi tem um procedimento mais "fronteiriço": propõe um jogo ficcional para um outro interlocutor que recebe esse jogo como algo na ordem do Real. Marcelo Rocco traduziu bem esse trabalho: Didi parte do efeito do Real para atingir o Real.

Enquanto no trabalho de Lica e Nina percebi a questão do espaço e como cada lugar altera a potência do procedimento, no caso de Didi apontei a questão do LIMITE DENTRO DE UMA PROPOSTA ARTÍSTICA. Para o Didi fiz a seguinte provocação : até onde começa e até onde termina o jogo que você propõe ao outro nessa sua caminhada pela cidade? Você tem controle e consciência do jogo perigoso que você cria o tempo todo? O que você pesquisa nesse procedimento? O que você deseja pesquisar: estratégias de jogar mais lucidamente essa proposta ou como se colocar mais em risco? O fato é que se trata de um jogo tênue e que é necessário e salutar saber a hora de começar, continuar e parar.
Presenciar dois pastores pregando e exorcizando a pomba gira do corpo de Didi, que cantava e se divertia com tudo, ao mesmo tempo que jogava com esses homens, foi uma experiência maravilhosa e a constatação desse trabalho que coloca tudo em deslizamento: onde ficção e onde realidade? Fiquei muito impresionado com o que vi e vivi.
Foi mais uma noite de perguntas e muitas possibilidades de investigação.




Segunda-feira, 22 de Setembro de 2008. Teatro Marília. Porão. Procedimento coletivo envolvendo as pesquisas de Marcelo, Didi e Saulo. O universo da prostituição e do travesti. Seres da margem e da beira ? Várias questões se apontam.
Presenciamos momentos de alta exposição dos atuantes, até onde o limite e o constrangimento que vivenciamos?
Em meio a objetos espalhados pelo chão e a uma atmosfera de sexo, vertigem e agressividade, os performers Didi e Saulo se experimentam e nos experimentam. Beiram vários lugares jogando-nos na fronteira desse experimento: tempo real se mistura com tempo ficcional , ligações do celular ao vivo para profissionais do sexo causam interesse e até incômodo, enfim são muitos lugares sem definição borrando qualquer possibilidade de identidade.
Fico exausto com tanta perversidade, dor e exagero. Meus limites foram testados, mas consegui chegar ao fim. Momentos de nudez, cenas grotescas e lapsos e vazios invadindo o espaço o tempo todo.
Vejo o diretor Marcelo criando provocações para os atuantes e colocando músicas diferentes que sugeriam novas atmosferas de vivência. Houve um momento muito bonito: se escuta a Ave Maria e Didi de noiva está sentado solitariamente sobre uma caixa. O contraste cria uma imagem forte e traz sensações de abandono.
Saulo traz os belos textos de Caio Fernando Abreu em alguns momentos e Didi narra fatos e histórias de dor e violência. Num dado momento Didi fala de si mesmo e conta da relação com o pai e a negação deste diante da homossexualidade do filho. Parece-me que essa narrativa surge a partir do contato com uma gravata que trouxe a presença do pai. Didi então afirma : “Eu fico em silêncio e respiro”. Foi um momento tocante, de poucas palavras , mas onde se percebe que o sujeito ESTÁ ali.
Acontecem momentos em que os atuantes estão perdidos, fragilizados e até desesperados, tentando fazer algo, encontrar um sentido, mas estão exaustos, e isso é tão bonito de ver e partilhar.....
O trabalho falava dos CLASSIFICADOS, mas como , se também classificava a tudo e a todos? E a questão para os pesquisadores, como se apresenta? Como falar desse universo e deslocá-lo de um lugar já conhecido? Como dar um novo olhar? Se fala de qual é o valor de cada um no mercado da vida, quanto valem esses que se dizem pesquisadores de arte,ou melhor, meros pedaços de gente como toda gente?
Foram nas faltas, no caos, no desamparo artístico, quando não se tinha nada a fazer e a dizer, que tudo foi feito, dito e vivenciado.

Classificados

Dia 22 de setembro. Procedimento: Uma união entre exercícios textuais experimentados por Didi, Saulo e Marcelo. Os classificados dos jornais sobre venda e troca dos corpos usados como narrativa. Vários objetos no chão para serem usados e distorcidos em diversos momentos. O público (no caso, apenas o Obscena e poucas pessoas de fora) desce vendo os travestis de calcinha e sutiã se maquiarem. Saulo já experimenta ousar com o faxineiro do teatro Marília, flerta com ele em uma postura de brincadeira confortável, pois ambos se conhecem. Didi começa a ler os claissificados e decide ligar ao vivo para os travestis e garotas de programa na frente do público , colocando questões sobre o universo da prostituição. O celular fica no alto falante para que todos ouçam a transação.
Didi se oferece para trabalhar, pede dicas de comportamento e procedimentos em agências para prostiuição.
Flerta com os garotos de programa, depois transforma o risco em piada, saindo do lugar de investigação para o trote. Desvia o olhar para o lugar cômico. depois Saulo, começa a narrar várias desventuras, propondo um misto, juntamente com o Didi, sobre histórias inventadas e histórias reais de suas vida particulares. didi vê uma gravata, narra sua infãncia e o desejo de seu pai em vê-lo casado, masculinizado, engravatado. Saulo usa suas narrativas de Caio Fernando Abreu, ambos falam de seus sonhos, em uma miscelânia de ficção, tempo real e vidas atorais: o olhar de casamento para o travesti, ter filhos, o cotidiano da rola, "o mundo te engole" - diz Didi abrindo e fechando o ânus. Ambos ousam dançar, proponho musicalidade para envolver, em certos momentos, jogos dramáticos,os atores interagem pouco com a música, vestem e desvestem roupas, constróem performances mescladas de drag queen e travestis. Saulo mantém uma voz forte em uma mistura de masculinidade e homo eretus. Dançam, desfilam para o público. As vezes são agressivos, como uma arma apontada no cu, na boca.
Tudo é normal: rola, cu, dinheiro, rola, cu, dinheiro, o círculo diário do programa. Didi desvia o caminho para um desfile de moda.
Percebemos cansaço nos atores, esvaziamento, "o que faço agora?" pensam os atores, e propõem mais e mais, se esgotam. Peço para parar.
Na discussão ouvimos opiniões interessantes, sobre o olhar da ligação, como conversar ao vivo com um travesti pelo telefone sem expô-lo ao lugar de produto novamente? como falar da margem sem mantê-la no mesmo lugar? Érica diz que todos nós temos um preço: para alguns pode ser uma pequena soma de dinheiro, para outros um simples Eu te amo!, outros um jantar, etc. como nos colocamos neste lugar? o caos iunstaurado no laboratório pode desviar? etc . e etc.

segunda-feira, setembro 22, 2008

A cidade das mortas: Experimento cênico inacabado.

Quem é a obra de quem? Mulher: uma obra em construção. Desculpe-nos o transtorno. Estamos trabalhando para você. Não é possível explicar, é necessário construir.

Alguma hora da noite e estamos na Praça Sete.
Uma mulher caminha carregada de sacolas. Seu corpo objetos. Embalagens plásticas metalizadas produtos de limpeza cosméticos mantimentos eletrodomésticos utensílios do lar higiene pessoal familiar.
Uma outra mulher a segue, nas mãos uma embalagem de creme de cabelo da qual saca seu instrumento. Um giz. A dramaturga vai desenhar e escrever continuamente. Narrativas jornalísticas poéticas científicas dicionarescas inventadas documentais. Escritas do momento.
A mulher objetos caminha. Instala seu corpo no espaço. Nos monumentos. Nas ruas. Destaca a arquitetura. Deita-se no chão.
A dramaturga desenha. A Cidade das Mortas. Seus corpos objetos no calçamento da cidade. Os anúncios das prostitutas de Curitiba devem percorrer esses corpos mortos, desenhos a giz no chão. Também devem estar lá o verbete do Aurélio e o inventário de tarefas inúteis. As manchetes e estatísticas. E os desejos de consumo das mulheres domesticadas pela tv. A dramaturga já começa a criar preferências. Ah, adoraria poder deitá-la no asfalto. Desenhá-la em meio aos carros. Parar o trânsito.

Mulher. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Mulher da vida. Meretriz. Mulher à toa. Meretriz. Mulher da comédia. Meretriz. Mulher da rua. Meretriz. Mulher da zona. Meretriz. Mulher.
Parir. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Amar. Sujeitar. Sacrificar. Lavar. Passar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Aquecer. Embalar. Beijar. Lamber. Chupar. Dar de mamar. Transar. Mesmo sem vontade. Mulheres domesticadas pela tv. Mulheres eletrodomésticas.
A mulher em relação ao marido. Esposa. Rolinhos pregadores talhares bicos de mamadeira chupeta fralda peneira vassoura escova botão linha tampa bombril perfex avental sutiã calcinha meias batons potes hidratantes depiladores filhos planos de saúde férias marido. Feia. Gorda. Velha. Usada. Jogada fora.
A gente pensa que é mulher e é só fêmea. Bichinho de estimação. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca. Galinha. Piranha. Filé. Gostosa. Gostosa. Samy. 20 anos. Morena mestiça. Safada e sapeca. 100% completa. Sexo anal total. Gosto do que faço.
Corpo receita sexo beleza corte cabelo cor unha esmalte batom inverno verão diet light in out Enterrada a jovem de 14 anos encontrada estuprada e morta.
Moda revista filhos baby sitter babá empregada carro seguro colégio celulite flacidez plástica estética beleza jet bronze limpeza de pele completa eletrólise depilação de última geração massagem redutora massagem relaxante drenagem linfática vácuo com endermologia e arte.
Uma mulher é feita de arestas, becos, buracos. De sangue, veias, garganta. Uma mulher é feita de voz, pernas, pensamento e útero.

A mulher objetos atravessa as avenidas, avança para a Praça da Estação. Caminha entre os pontos de ônibus e deita-se na passagem dos pedestres.
A dramaturga tem especial afeição pelas passagens de pedestre. O chão é liso e inclinado. O espaço é razoável e atrapalhamos o trânsito.
Nina Caetano. BHZ. 15 de setembro de 2008.






sábado, setembro 20, 2008

15 de setembro: Louca por oração

As gazes amarradas no corpo... a camisola rosa clara... o batom borrado na boca e coragem, ousadia para o que viesse a suceder na rua. Trabalhar no limite tênue entre o real e o fictício é perigoso, mas também é muito instigante. Mãos à obra: sai do Marília carregando um objeto: uma imagem de santinho quebrada. Antes de chegar à fonte localizada em frente ao Palácio das Artes, achei uma lata velha de biscoito. Levei-a até a fonte e lavei. As pessoas olhavam desconfiadas, tentando entender que Ser era aquele: Homem ou Mulher? Bem... depois de lavar a lata foi seguindo em direção á praça sete e encontrei um outro objeto: um pau amarrado no outro, uma espécie de cruz. Peguei-o e coloquei nas costas. Um cara passou e comentou: “É um apocalipse!”. Uma louca travesti carregando uma imagem de santa quebrada e uma cruz... isso choca os transeuntes com toda a sua tradição religiosa. Foi seguindo e me deparei com as silhuetas de um corpo de mulher desenhado na calçada( foi o procedimento de uma outra atriz: Lica). Deitei sobre esse corpo, colocando a minha lata e sobre ela a imagem da minha santa quebrada. Atrás da lata a cruz e comecei a rezar! As pessoas pararam ao meu redor sem entender nada daquela situação! De repente uma “mano” fala: Nossa que bizarro! E eu respondo: Cala a boca, não se pode nem mais rezar! E ele retruca: Fica na sua e continua rezando! Nesse instante eu percebi que passei dos limites e aos poucos fui saindo daquela instalação. Atravessei a Avenida Afonso Pena e montei a mesma instalação perto de dois evangélicos. Um deles se questionaram: isso é homem ou mulher? O outro respondeu: é Pomba Gira! Comecei a rezar deitada sobre o chão com as minhas nádegas quase expostas até que passou uma senhora e me disse: Pode arrumar a sua camisola, você já viu, né? A gente já é chamada de tudo, as pessoas já não tem respeito... Eu respondi que podia e ela puxou minha camisola. Os dois evangélicos continuavam a me observar até que um deles veio em minha direção e me entregou uma oração. Ele colocou a mão na minha cabeça e começou a orar, pedindo para eu repetir. Eu resistia, mas ele continuava. Houve um instante que ele disse que eu tinha que mudar de vida, que eu tinha que ser alguém na vida, tentar trabalhar sem ficar na safadeza. E eu disse: É muito fácil, né? Você quando chega em casa tem alimento na geladeira e eu? Ninguém me dá emprego porque sou travesti e por isso que sobrevivo na rua, muitas vezes fazendo programa! Ele me disse: se você aceitar Jesus, em uma hora você vai conseguir se alimentar e eu respondi: Não acredito em Papai Noel. (Silêncio...) Ele me convidou par ir à uma lanchonete e me deu uma coxinha, um pão de queijo e um suco de caju. Passou o endereço da sua igreja e me convidou para ir lá e me disse: Sai dessa vida! Na Bíblia Jesus disse que o homem foi feito para ficar com mulher. Eu tinha um amigo que era assim... e ele curou depois que encontrou Jesus. Eu olhei no fundo dos olhos do evangélico e disse: Jesus me ama! Ele ama a todos, mesmo com as opções sexuais. Ser gay não é doença! O fato de eu ser travesti não vai impedir que eu seja um homem bom! Quantos pais de família que freqüentam igrejas e que estupram seus próprios filhos, matam-nos, traem sua mulheres. E aí? Eles são homens que gostam de mulheres! E são íntegros? Tem respeito? São bonzinhos? Acreditam em Deus? São esses tipos de homem que vocês gostam que freqüentam a igreja? Eu posso fingir ser uma coisa, mas estarei me enganando e enganando os outros. Travesti é gente, é homem, tem dignidade, respeito! O amor à Deus e ao próximo não está na sexualidade, mas no espírito! O espírito não tem cor, não tem sexualidade! O evangélico me disse: Você é estudada... desculpa estudado? Eu disse: Boa noite!Terminei o meu procedimento voltando para o Marília.

Sexta feira 02 de setembro– Transgressão política

Sexta feira – Transgressão política

Foi o procedimento de Marcelo Rocco e a proposta era sair de travesti pelas ruas como candidata à vereadora, ou seja, prometendo legalizar a prostituição. Começamos às 19 horas. Eu estava maquiado, cabelos soltos, um vestido branco que aderiu ao meu corpo, um sobretudo preto e uma bota preta. Estava impecável! Dessa vez, as pessoas não tiveram muitas dúvidas a respeito de minha feminilidade, pois todos, de modo geral, acreditavam que eu era uma mulher e prostituta. Começamos nossa peregrinação saindo do teatro Marília. As pessoas olhavam muito e começamos a entrevista: “Você concorda com a legalização da prostituição? Você acha que legalizando, os travestis, as mulheres terão mais proteção, com direito às férias, carteira assinada, etc? E o que você acha do SUS dá assistência para os transexuais quanto às cirurgias plásticas de colocar silicone?”. Eu e Marcelo percebemos que a maioria dos homens eram mais favoráveis do que as mulheres sobre a questão da legalização. Muitas foram as respostas, mas a que mais me impressionou foi a de uma casal que nos disse que se houver a legalização muitas crianças irão se prostituírem. Perguntamos a um catador de latinhas e ele disse que aceita a puta, mas não as drogas. Entramos numa loja Evangélica e vendedora disse que na Bíblia o homem foi criado para ficar com mulher e vice-versa, constituir uma família, etc. Ela não concorda em legalizar, mas é uma opção de vida dessas pessoas, pois cada um tem o livre arbítrio. Enfim, o mais interessante disso tudo foi que quando eu ia lançando as minhas propostas como candidata, alguns homens e mulheres me olhavam de cima a baixo, sobretudo os homens, mas logo em seguida que eu dizia que era travesti os olhares mudavam e o preconceito se expandia...

sexta-feira, setembro 19, 2008


Estado OBSCÊNICO dia 18 de setembro de 2008 (9910-181-91-10-1).

Hoje, uma quinta-feira chuvosa e fria, após o trabalho chego em casa. Um chá para aliviar um estômago cansado. Um convite para ver um documentário: ‘Meninas’, de Sandra Werneck. Quatro meninas do morro dos macacos na rocinha. De 13 a 15 todas estão grávidas. Os pais: um traficante; um estudante; um ex-avião, pai de dois por sinal. Escola? Lazer? Trabalho? Nada. As meninas são responsáveis pela casa e pelos irmãos mais novos. Os rapazes ou estão no crime ou estão em subempregos. Não há perspectiva. É o ‘mercado da buceta’ imperando seu ‘modo operante’ – fabricação de mão de obra barata, alienada e que permanece em faixa etária ideal para a manutenção do mercado. Rapazes morrem cedo, as meninas produzem filhos anualmente e muitas vezes de pais diferentes. A mais nova das entrevistadas é viúva aos trezes anos. Não que nesta idade minhas avós já não estivessem de mãos entregues a rapazes para se casarem em breve e minha bisavó com esta mesma idade já estava a um ano de se casar com um primo de segundo grau com 23 anos. Mas, o que se passa é mais delicado. São meninas que desejam ter filhos para serem reconhecidas como seres humanos. Elas desejam ser mães para terem uma cama para si e o filho, para terem comida a mais, para terem o título de mãe. Elas não têm condições de escolher uma profissão, logo querem ser mães. Esta realidade existe a alguns quarteirões da minha casa. Passo de ônibus e vejo meninas a andar com crianças pelas mãos, no colo, no ventre. Não brincadeira mais, elas não têm o direito de sonhar e ser alguém, alguém que realiza algo mais que cuidar e procriar. Imagem estagnada da mulher. Da função e do exercício pertinente a entidade social feminina. Daquilo que o sistema reserva a mulher. Enfim, a mediocrização da mulher ao longo de séculos. E agora deparamo-nos que esta realidade.
Sinto-me revirada por dentro. Três partos são filmados. Um uma violência. Sinceramente, é uma violência. Três cesáreas e um parto normal. Meu ventre chega a doer. Doer. Reviro-me no sofá. É triste vê-las sair do hospital cansadas, felizes e sem a menor idéia do que as espera. Os pais tensos, sem dinheiro. Casas apertadas. As irmãs mais novas seguem o mesmo caminho e treinam sem cessar ao longo do dia: imitam os cuidos com as bonecas. O gesto se prolifera. A função se apresenta e se representa na brincadeira. A imagem se estagna, ao longo de anos ela é repetida às meninas mais novas e por estas assimiladas. O que fazer? Quando percebo no procedimento mesmo da ‘brincadeira de casinha’ os corpos são dóceis aos objetos, nos os acatamos com nossos gestos. Claro, somos mulheres conscientes e em exercício de nossa feminilidade e mesmo assim somos dóceis.
Ozana já nos falara dessa realidade quando nos encontramos no início do ano. E hoje sinto o mesmo engasgo, ou hoje sinto mais? Sim. Eu sinto mais. Isto é mais real. Percebo mais claramente o que é programado em mim e tendo lidar com isso todos os dias. Este é meu exercício performático: escapar do ‘mercado da buceta’. Reconhecendo diariamente os meus gestos repetitivos, minhas ações programadas, meus momentos de ausência, de displicência diante de mim e da minha feminilidade. Puxo o períneo respiro fundo e sigo em frente. Sempre adiante.
.SARAVÁ.

domingo, setembro 14, 2008

Um ser no Asfalto

Quinta – feira: Um ser no asfalto

Foi o dia do meu procedimento que ocorreu na praça sete, na avenida Afonso Pena. As 18h 40 foi para o camarim do Teatro Marília e comecei a me vestir: uma camisola preta curta, batom borrado na boca, óculos escuro, pés descalços, algumas gazes cobrindo o corpo. Estava tudo preparado, bastava a avenida para saudar os meus passos! Sai do Marília e foi caminhando em direção à praça sete. Ao passar do lado do Palácio das Artes entrei na fonte que ficava à sua frente e comecei a dançar! Dançava sobre uma chuva de cores, reflexo das iluminárias afixadas no chão dessa fonte. Parecia uma criança!E eu saltitava, corria, e ao mesmo tempo me policiava com medo de ser pego por alguns policiais. Foi uma imagem bonita de um ser homem-mulher, meio puta, meio louca ( as pessoas não conseguiam denominar essa figura andrógena ) versus a classe elitista. Uma interferência perfeita,que feria toda a estrutura arquitetônica do grande palacete de artes. Em seguida, segui em frente pela avenida e parei em uma esquina. Escutei vozes de muitas pessoas orando. Olhei para o alto de um prédio e de lá surgia os murmurinhos. Ajoelhei na calçada e olhei insistentemente para o alto, batendo palmas e seguindo o culto evangélico. Os transeuntes passavam e me olhavam estranhamente e na entendiam nada! Até que um pivete sentou–se comigo na calçada e conversou comigo, perguntando onde eu morava. Eu respondi: em frente ao hospital João XXIII. Ele tirou do bolso muitas moedas de vários valores e me ofereceu uma única moeda de 0,25 centavos. Ele disse: Você quer essa moeda? Dá pra comprar uma bala, um docinho. Eu agradeci e perguntei a ele onde ele morava. Ele me respondeu que há alguns dias atrás ele morava na cadeia. Nesse instante eu me arrepiei por inteiro! Tentando disfarçar de maneira mais harmoniosa e o mais natural possível e perguntei: Cê tem um cigarro aí? Ele respondeu que não e me contou que estava preso porque matou seu irmão. Eu perguntei: Ele era chato? Ele me respondeu que era insuportável! Eu não entrei em detalhes e falei que precisava dar uma andada! Despedimos um do outro e fui seguindo... o dono da banca de jornal me deu uma bala e um pirulito quando eu passava! Agradeci e finalmente cheguei na praça sete. Parei em frente a um bar de música ao vivo e fiquei dançando. Vários rippies ficaram a me vigiar e um deles me parou e disse: sabe o que eu mais gostei em você? A sua loucura... esse seu jeito de dançar feito bombinha livre... esses pés descalços, a sua liberdade é ótima! Você é loucona! Eu gosto disso! Ele me convidou para bailar e eu aceitei. Nesse momento estava tocando a música: Bem - te – vi! Dançamos muito e os amigos dele ficavam empolgados! Esse rippie falou que era boliviano e que não encontrava sentido de vida aqui em BH, mas que naquele instante estava começando a aparecer uma luz de estrela em sua vida. Ele disse: Você é a mais linda estrela de Belo Horizonte! As estrelas merecem ser tratadas de forma especial e por isso vou te dar um anel. Ele rapidamente fez um anel e o colocou nas minhas mãos, seguido de muitos beijos sutis no meu dedo. Dançamos mais um pouco e eu pedi para que o amigo dele ( um hippie de mais idade ) segurasse meu pirulito enquanto dançava! Comecei a cansar e o hippie me pediu um beijo e eu negava. Até que chegou um momento que um outro amigo desse hippie boliviano puxou minha camisola na tentativa de ver o meu peito e ele disse que eu era travesti, veado! Eu rapidamente me mostrei aborrecida com a situação e sentei no chão. O boliviano foi se afastando de mim, enquanto o velho hippie dava esporro no outro hippie, dizendo: “ela pode ser o que quer, ela é livre! Tenha mais respeito seu escroto de merda! Sai daqui sua merda!” O velho começou a dar bordoadas nos braços do outro hippie até ele sair. Depois ele me disse para eu não me importar com esses ratos! Eu disse que queria ir embora e ele me pediu em namoro e me convidou para a gente namorar em frente à Igreja situada na rua Espírito Santo. Eu disse que não podia e que estava cansada! Ele delicadamente me deu um beijo na testa e disse até qualquer dia! E eu fui com minha loucura a transitar por entre lixos e gente, entre olhares repressores e olhares de piedade.

sábado, setembro 13, 2008

O copo de champagne sempre deve estar cheio

Dia 08 de setembro. Reunimos no Teatro Marília para discutir datas, horários e procedimentos em diálogos. Percebi que muitos lugares estão em construção correlacionados,vejo que pude começar materiais a partir das mostras de outros pesquisadores e unir forças para construir uma terceira coisa (que ainda não sabemos o que é) entre uma proposta e outra.
Os materiais possíveis dos colaboradores estão tentando unificar, ou pelo menos dialogar mais a partir da idéia do outro.
Falamos também sobre os seminários e possiveis convites de grupos alheios ao Obscena para proporem dinâmicas, ou algo teórico-prático para o público que será convidado.
Como nossa agenda está bem lotada, optamos por acrescentar os vídeos em dias extras do encontro do Obscena.
A Érica pontuou uma questão que também me preocupa: como manter o público para o debate, já que agora as mostras são simultâneas? como fazê-los não se dispersarem, como manter o debate neste certo caos de mostra e ver a percepção do espectador, já que um ponto forte da pesquisa é construir junto a ele e com ele?
Ao observarmos a mostra dos pesquisadores também seremos públicos, e poderemos pensar em diversas colocações diante das propostas que aparecem aos nossos olhos.
Vi a proposta do Idelino corporificado na Lica: Compreendi melhor a sutileza de dois objetos, na verdade a ausência de um, pois Lica estava descalça, e a existência de outro - a taça de champagne em suas mãos.
A sutil decadência de uma mulher de vermelho, desvairada, caminhando pelas ruas ao redor da praça da Liberdade.
Lica fez juz ao nome da praça em sua total liberdade de sentidos desconectada do ser social. do corpo cotidiano do trabalhador discreto e cansado. O vermelho mostrava a sensualidade de uma mulher no cio, a procura, quem sabe, de alguém para manter seu copo cheio, um homem viril para uma mulher audáz, sonora em suas risadas.
Percebo que a ausência de um objeto- os sapatos e a super exposição do outro- o copo, alteravam a rotina daquele lugar, corporificando o desejo vermelho da mulher da boca vermelha, sendo observada por atentos olhos masculinos, presunçosos na possibilidade de ter algo, cujo pagamento talvez seria um pouco de alcóol..

quinta-feira, setembro 04, 2008

calcinhas e doenças

11/08/2008

Saída. Malinha, roupa e corpo. Caminhada até esquina. Troca como entrega. Vestir e desvestir em público. Alongar os músculos. Alertar os olhos. Caminhada. A rua pode atacar a gente. A gente pode acatar a rua. A gente pega ônibus, olha as horas, dobra esquina, reclama no trânsito, faz ocorrência, atravessa na linha, sobe degrau, circula a praça, trabalha, vai pra casa. A gente faz tudo sem saber por quê.

A gente não gosta, não conhece e não sabe novidade. A gente vai.

No sinal, vendendo calcinhas. Usadas, novas, no saco, no corpo. Ninguém quer comprar. Olhe a calcinha! Veja a calcinha! O tempo em verde para agir. Não há resposta visível. Não há retorno. Vendo grávidas lingeries. O carro vai e leva pendurado no retrovisor. A calcinha me condena? O motorista joga fora.
Um cara, que apareceu na feira passada, retorna. Ele quer filmar. Ele acha que vou lá todo dia. Ele é louco. Ele põe a namorada pra ouvir o texto. Ele recolhe a calcinha jogada pelo taxista. Ele fica aflito com a polícia. Ele fica com medo da câmera. Agora gostaria de conversar com ele. Ele é mais fácil do que eu. Falar de mim é pior.

Idelino fez uma intervenção com a câmera. Ele se escondeu mostrando-se. Gostei muito. Disse para o cara que estava registrando manifestações de rua em geral. Gostei da sensação de ser registrado, mas não ser protegido pelo cinegrafista. Só pra lembrar, o dia em que saí atrás de Lica, ouvi uma mulher falando ao telefone mais ou menos assim: “Tem uma mulher louca ali vestida cheia de objetos. E não tem ninguém filmando ela”. A câmera pode dar o aval de artista. A câmera serve de roupa.

Sobre a mostra, precisamos de mais organização, eu acho.

Seria o mesmo sinal. Quero vender doença venérea (atravessado por Saulo). Na calcinha, na camisinha, na seringa. Quero uma calcinha de cada mulher obscena; uma que não volte mais. Rumo tomado também a partir deste diálogo com um transeunte:
É sobre doença? (espichei a calcinha)
Mas não tem nada escrito! (reaproximei a calcinha. Olhou de perto)
Ah, é sobre doença!

E a mulher, onde está? O feminino vende. O feminino atrai. Homem com elementos femininos vende doença venérea com mais facilidade. Quero realizar. Talvez em outro lugar que não Belo. O tempo que não me deixa.

Tenho sífilis, cancro mole, candidíase, herpes simples genital, gonorréa, condiloma acuminado / HPV, Linfogranuloma venéreo, granuloma inguinal, pediculose do púbis, hepatite b, AIDS. Quem quiser, é só descer do carro e pegar. Tem que pagar, porque nada disso eu ganhei de graça.

terça-feira, setembro 02, 2008

SEJA REALISTA: LUTE PELO IMPOSSÍVEL

Sexta-feira - O procedimento: Travesti candidata à vereadora. a defesa das questões sobre a legalização da prostituição, do direito à composição hormonal no SUS, ao aborto. Trinta pessoas entrevistadas nos arredores da praça sete.
O que me levou a este lugar? Talvez estava perdido após ter saído da vitrine, algo que começava a delinear, uma pesquisa de profundo interesse que se encerrou na frente do Marília.
Andamos pelas ruas entrevistando homens, mulheres, casais, idosos. Queríamos diversificar a composição da enquete.
As questões que se levantaram foram determinadas por inúmeras respostas, ouvimos:
"-A prostituição, o adultério, salvaram meu casamento. disse um senhor
-O homem foi feito para a mulher, a mulher foi feita para a submissão do homem. disse uma senhora
-O governo domina o corpo da mulher, decide por ela. falou uma gerente de compras
-O travesti é o setor da prostituição mais discriminado - disse uma jovem
- Não há problema em se prostituir, mas não na rua. Disse um segurança"
muitas outras falas.
Percebemos que a imagem é importante neste lugar, em que podemos fazer, mas não nos mostrar à exposição pública, a legalização da prostiuição, o direito à carteira assinada, à férias, à aposentadoria de uma profissão milenar, que sustenta grande parte da economia no Brasil, não pode ser feita, mas pode se continuar com ela, às obscuras, gerando lucro fortíssimo no corpo quase escravo, explorado nesta grande sede urbana, em que a movimentação é maior que as do Shopping Cidade, em que os clientes brigam por uma liquidação de carne nova, em que estes mesmos comem os sonhos de meninas do interior (na maioria delas), e se alimentam deste corpo forte, mas cheio de arranhões do tempo. Um homem entrevistado disse que, caso a prosituição venha a ser legalizada as crianças irão se prostituir!! mais??
Outros acreditam que o salário das prostitutas irão diminuir... Pode ser...
Percebemos que os homens eram mais favoráveis à legalização que as mulheres, talvez porque são os que mais usufruem deste serviço...
O moralismo sempre caminhava nas questões munido de argumentos bíblicos: É pecado!
E este aumenta qundo se fala da prostituição do travesti: É pecado maior ainda! Pois é uma humilhação um homem deitar com outro homem...Um homem trajado de mulher, contra a natureza: o sexo anal é pecado!! isto tá na Bíblia!!!
Um catador de latinhas: "Prostituição sim, dorgas não!" Panfletário, não!?
Isto seguiu a noite toda... Duas educadoras expuseram que o aborto pode ser evitado com camisinha.. a prostiuição aumenta o índice de traição... será que existe alguma prostituta que obriga a ereção no homem? Invade sua casa à procura de sexo pago?
Percebo o efeito placebo de se continuar na obscuridade, sem regularização, sem quantificar e assumirmos que somos hipócritas, aceitando a venda legal dos corpos, pois irá continuar querendo ou não ...

Vestida de gase e vento

Quinta feira: Didi sai às ruas vestida de gase e vento. Uma profusão de loucura e alcoolismo. Os transeuntes tentam classificá-lo, enquadrá-lo em um lugar da memória - bêbada, hippie, louca, sempre louca. A loucura parece a experiência do não conhecimento, da não identificação, mais uma vez, da margem. Um mendigo tenta conversar com ela, fala de sua vida na prisão, confessa em alguns minutos seu mundo particular, encontra uma amiga nos olhos dela. Ambos sentam entre classificados de jornais e ratos nas ruas.
Didi resolve dançar no Palácio das Artes, em frente à fonte. Aquela visão parecia um rasgo na elite, um arranhão naquele lugar erudito. As pessoas olhavam e riam. Um militar ia fazer algo, mas riu. Absurdo para ele, e todos observaram a dança na fonte. Didi enfrentou, ao meu ver, uma linguagem social determinada, a linguagem da elite, rompeu com este lugar, misturou dois mundos, ainda , é claro , do lado de fora, uma pesquisa interessante para dar continuidade no próximo mês.
Didi vai à praça sete, vestida de gase, preto e vento. os hippies desejam a louca livre. Música ao vivo: Garota de Ipanema. Didi dança a música acreditando ser feita para ela. e Didi gira, deixando um embalo, uma valsa. Um hippie a tira para dançar, oferece um anel, e a encosta em seu corpo em um romantismo exacerbado. Tenta beijá-la, é repelido. Confessa coisas de si, mais coisas intimas que Didi tem nas mãos, nos ouvidos. Esta identificação que ocasiona onde passa, relaciona-se com sua loucura, com seu corpo no espaço, a igualdade aproxima as pessoas, cria comunhão. Didi vai embora, deixando a loucura do lado de fora do Marília.

segunda-feira, setembro 01, 2008

'o mercado da buceta' - objeto miniaturizado + espaço urbano = representação em uma ação não representacional




Agora são 10:29 da manhã, segunda-feira, dia 01 de Setembro. O mês do cachorro doido passou e ela sente-se como uma cadela suja e só. Chora em seu quarto. Sente-se entupida e ao mesmo tempo completamente vazia. Na última quinta-feira, dia 28 da Agosto ela cumpriu com seu procedimento: 'o mercado da buceta'. Reuniu algumas mulheres e um homem e descera para a Alameda Ezequiel Dias, onde há 28 anos atrás ela foi parida, ou melhor foi puxada pra vida, pois sua mãe com 42 anos não tinha dilatação suficiente para cuspí-la para o mundo. Isto deu-se numa segunda-feira, dizem que quem nasce nas segundas trabalham muito a vida toda. E ultimamente é só o que ela tem feito: TRABALHAR. Um tanto para pagar as dívidas da vida moderna, um outro tanto para não sucumbir a dor que ainda habita em si.
Às vinte horas estava ela já molhada, com uma sacola de brinquedos na mão esquerda e um balde d'água na direita. Ela quer lavar suas dores e também limpar de si toda a conformação que o 'mercado da buceta' a imprimiu durante esses 28 anos de vida. Acompanha o procedimento de Patrícia, em seguida o de Saulo e enfim, convida o público a acompanhá-la a Alameda. Está nua por baixo do vestido transparente e molhado. Mas, as pessoas não querem se incomodar com esta mulher molhada que desce a rua. Medo? Indiferença? É teatro? Enfim, seja o que for é melhor continuar no ponto de ônibus e ir para casa descansar para o outro dia de trabalho...
Escolhe um canto mais iluminado da calçada do Parque Municipal, quase em frente ao Hospital da Previdência, onde nascera. Ali será o local do despacho. Chama as mulheres para brincar de casinha e pede ao rapaz que apenas observe. Ele é gentil e mantêm-se onde nós o permitimos ficar. Ela distribui os brinquedos, primeiro Lica ganha uma vassoura e um rodo, ela varre o espaço para construirmos a casinha. Nina ganha o jogo de chá, Patrícia o jogo de bloquinhos de montar 'o castelo', as demais ganham panelinhas, fogão, cestinhos... Todos os objetos são miniaturas.

"A miniatura é uma das moradas da grandeza."

"A miniatura estende-se até as dimensões de um universo. O grande, mais uma vez, está contido no pequeno."
Gaston Bachelard, 'A poética do espaço'

Trabalhar com objetos que representatam 'o quê' a sociedade reserva à educação da mulher, estando estes em forma de miniatura é o que a interessa. Concentrar imagens dilatadas. Condensar na miniatura a história que há séculos vem escrevendo para a mulher. O manual de boas maneiras pequeno burguês exemplificado minimamente e universalmente. ?O 'mercado da buceta' em miniatura dentro do grande mercado que é nossa vida cotidiana.
Ela sente-se como uma carne no açougue. Uma carne tenra, suculenta que muitos querem comer, mas nenhum até agora quis germinar, frutificar. O homem consome a mulher e a ainda a presenteia com os objetos que farão suas vidas mais gostosas e fáceis. E na loja de brinquedos isto está bastante claro: liquidificar, batedeira, geladeira, carrinho de supermercado, bebês, bonecas sexis, tudo em miniatura para criar e educar 'mini sexis donas de casa super poderosas vacas maravilhas' que à noite irão se entupir de cremes e remédios anti tudo que é natural para manter uma aparência representativa da boa mulher comedida e respeitada.
É possível manter-se fora desse esquema? É possível amar um homem sem ser sugada por ele? É possível conceber um filho e não ter que se responsabilizar sozinha por este ser humano nascido de dois seres humanos? É possível ser desejada mesmo não sendo conivente com a beleza midiatizada programada escolhida? É possível ser quem sou? Ou mesmo exercitar o meu ser sem ser?
Ela e Lica decoram a grade do Parque com retalhos de seda enquanto as demais recolhem folhas secas para brincar de comidinha. Não infantilidades nas ações, há o jogo, o corpo prontificado por uma memória de infância suscitada pelo objeto. A tradição que constrói e transforma nossos corpos em 'corpos dóceis'. Em roda as mulheres já serviram chá ao rapaz e assim ela o permite sentar-se.
Uma mulher se aproxima quer saber o preço da calcinha que foi colocada na grade. Ela pergunta pra mulher quanto ela daria pela peça _uai? eu num dou preço não o preço quem tem que dá é ocê que tá vendendo! sua voz estão meio amolecida pela bebida, mas ela toma uma coca-cola.
Lica assume a negociação. Entre preço e perguntas a mulher desabafa _ eu nunca tive a oportunidade de brincar de casinha, já pequena eu tinha que ajudar em casa, só agora com minha filha que eu posso brincar. _minha filha tem Lupos, eu descobri esse ano. _Mas quanto é a calcinha mesmo, cinquenta centavos?
E assim, a mulher ficou ali com as outras mulheres e mais duas outras vieram muito timidamente, olharam mas não quiseram olhar-se no espelho. Outras olharam-se, ajeitaram os cabelos, assim como Ana, que muito traquilamente admirou-se. Um momento belo. Uma mulher reconhecendo sua imagem no espelho vagabundo.
Ela não olhou-se. Sabia exatamente como estava e não queria mais que a imagem central construída. Os cabelos molhados escorridos na testa, os seios eriçados, o ventre e bunda proemientes, pés no chão e a menstruação escorrendo pelas pernas...
Ela precisa de sangue, ela precisa de espaço. Ela não quer 'mais do mesmo' e caminha em busca daquilo que não é premeditado e sim daquilo que é ação.
Por fim, após angariar duas calcinhas a um real cada a mulher se despede das qeu brincam, fala sobre generosidade e humildade antes de ir, abençoa a todas e vai, não sem antes querer levar consigo o rapaz que nos acompanhava. De fato é um moço belo.
Ela vai para o centro da casinha. Coloca numa cestinha coberta de seda as quatro alianças qeu trazia em seus dedos, representações de um amor, deposita-a a seus pés, recolhe o balde d'água e entrona-o em si, da cabeça aos pés. Sacode-se como uma cadela e saí avante, sem olhar para trás.