agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

segunda-feira, abril 27, 2009

A Experiência do Rastro

Acompanhei a ação do Obscena ontem na Praça Sete. A exposição de bonecas intitulada "BABY DOLLS" criou interrupções variadas no centro da cidade. Meu trabalho foi me fazer "espectador" deste trabalho , tentando me juntar aos outros espectadores-transeuntes e "escutando" os discursos e impressões deixadas pela ação de Nina, Lica, Erica e Joyce.
Interessava-me também escutar e perceber o RASTRO desta obra em processo e o que acontece depois de sua criação. O que se dá quando a dramaturga e as atrizes abandonam o espaço do trabalho? Que tipo de rastro, resto ou raspa permanece no espaço ou nas conversas entre as pessoas? A obra se faz autônoma, tem vida própria após a saída dos corpos obscenos? São questões importantes.

Rastro: vestígio, resto, partícula de algo, presença, fagulha, memória...

Quando Nina e Lica fazem a "Cidade das Mortas" diante de soldados na Praça Sete, estabelecem um jogo perigoso e poderoso com o espaço e os contornos. Cria-se uma CENA e os espectadores páram para acompanhar o ACONTECIMENTO. Escuto as pessoas: " é gente doida, mulheres que não gostam de homem, mulheres chamando atenção", etc.

As atuantes abandonam o espaço e deixam uma "escritura da presença" no mesmo. Começo o exercício do rastro e percebo que a obra se faz potente e provoca novos acontecimentos. Um fórum de discussões se inicia entre as pessoas que leram o texto grafado no chão. Fala-se de tudo: violência, política, corrupção, o que é ser mulher, a covardia dos homens, etc. Começo a marcar o tempo e por meia hora a presença escrita no chão causa fatos e conversas. Um debate sobre a violência contra a mulher. Vejo moças vendedoras de ouro debatendo o trabalho com os soldados e o melhor, uma moça se torna uma ATUANTE e passa a explicar o que entendeu para os soldados. Segundo ela, "é preciso ler de baixo para cima..assim se entende o texto. Meu filho, eu sou loira, mas não sou burra..." E na explicação dela, aquela "grafia", quase um objeto escrito, ganha mais VISIBILIDADE e cria interrupções variadas. Todos que páram recebem explicações dela sobre o que aconteceu e o que significa tudo aquilo. Ela chega a pisar sobre o texto e faz daquele "espaço escrito", um espaço cênico atraindo a atenção das pessoas... Depois escuto mulheres relatando que já apanharam de homens e falando da Lei Maria da Penha.... O fato é que a obra não cessa de causar reações e debates. Em outro momento a mesma moça entra no espaço cênico e fica dançando....chama a atenção e quando sai dele, várias pessoas chegam para ler o texto ali presente.....

Uma obra abandonada que não se abandona, cujo o rastro ainda tem vida e potência... Um jogo de se esconder e se revelar...a obra fica e é apropriada pelos transeuntes que passam. Isso me lembra a proposta de Barrio, que também deixava rastros e aos transeuntes cabia a AUTORIA e AÇÃO sobre o objeto abandonado. Para quem passou ali depois não fica claro de que se trata de uma ação artística ou performativa. Ou então a ação é relembrada a partir de uma ótica do Outro, que narra o que se passou e atualiza o evento.

sábado, abril 25, 2009

Como se fabrica uma mulher?


Há, sem dúvida, em nossa sociedade (...) uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aí de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso: (...) é preciso:
(...) questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante.
(Foucault: A ordem do discurso)


Não é possível explicar, é necessário construir: desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você. Mulher, uma obra em construção.
Quem é a obra de quem? Os estereótipos se reproduzem. Mulheres. moças. meninas. É necessário destruir.
Destruir: verbo transitivo direto. desorganizar, transformar, desfazer. Permitir que a fenda se produza. Entre as margens. Entre as imagens. Transbordar.


Se o acontecimento não é da ordem do corpo e o discurso está para além do verbal, que texto (escritura) é este que se imprime no corpo da cidade?

Livre das determinações de um autor-deus, entregue ao fluxo dos espectadores/transeuntes, a escritura se instaura em meio ao fluxo dos corpos leitores, se instala na fenda entre meu olhar/escuta que capta e o ato de desenhar as palavras no corpo giz no chão. O texto não pertence mais a mim. O texto é o corpo da atriz dialogando comigo, seus olhares, quando ela vê/interage com a menina de rosa e seu jovem pai: uma família. Quando estaciona sob o cartaz de "compromisso marcado" e tira fotos com homem que passa: casal. Quando avança sobre as reentrâncias/volumes da Praça Sete: monumento.

O texto se instala no tapete tecido das imagens, páginas de revistas femininas. O texto objeto brinquedo de menina. O texto rosa. O texto bonecas em série. O texto escuta cruzamento dessas vozes.
Neste sábado, 25 de abril, algo aconteceu. Algo não coube aqui, entre o masculino e o feminino. Praça Sete. 11 horas da manhã. No centro nervoso da cidade, a fenda ferida em exposição.
Narrativas em fluxo de nossas ações. A mulher que passa e ri. Aquele que se indigna. O militar da polícia montada que conversa com as duas prostitutas de Divinópolis e aprecia a "vista". Creuza e Neuza que, sempre a serviço dos homens, fazem uma leitura instantânea: "elas odeiam homem. Sapatão". Aliás, aqui, as leituras se farão instantâneas. É preciso explicar. Entender. E continuar o caminho sem interrupções. Mas hoje provocamos uma ruptura. Uma fenda entre duas margens. Hoje, nós irrompemos. A mulher que se revolta com a falta de explicações cartazes. Aquele que me pergunta. O grupo de moças que procuram sinais de que seja protesto, teatro, filme, propaganda. Os corpos sem entendimento permanecem. O discurso se produz. Aqui sou leitora. E registro minhas impressões. Registro dessas passagens sobre a terra.

Tudo que não está em uma margem, precisa estar na outra. Encontrar sua explicação. Mulher. Puta. Esposa. Mãe.
Mulher batalhão. Mulher chuteira. Mulher gasolina. Denominações. Designações. O nome da coisa e a ordem do discurso. Uma mulher noiva passeia seu corpo objeto pelas ruas. Peito. Bunda. Vagina. Mulher jaca. Mulher filé. Mulher fruta. Samy, 18 aninhos. Loirinha e sapeca como você gosta. Barbies. Pollys. Princess. Prontas para o consumo imediato. Adoro beijar. É só lavar e usar novamente. Liberal e discreta. Funcional. Preparada. Turbinada. Sexo anal total. Como você gosta. Útil. Fútil. Dócil. Doce. Muda. Morta. como você gosta.
Diet. Light. Endermologia com arte. Jet bronze. Mamoplastia. Himenoplastia. O selinho atesta a qualidade de produto novo. Bonecas em série. O rosa. O rosa. O rosa.
Desenhos a giz no chão.
Mulheres brinquedos. De cama e mesa. Sobremesa. Melancia com novas cores e propriedades nutritivas. Apetitosa. Saborosa. Gostosa.
A gente pensa que é mulher e é só FÊMEA. Bichinho de estimação. Depilação. Epilação. Hidratação. Lipoaspiração mata. Aniquila.

Extermina. Extingue.
Bruna, 19 anos. Tiro na cabeça. Ex-namorado.
Ana Cláudia, 18 anos. 14 facadas. Ex-jogador, ex-companheiro.
Salete. 37 anos. Ana Carolina, 27. Júnia, 20. Amanda, 19. Carla. 14 anos.
Excomungadas. Estupradas. Espancadas. Enterradas. Como você gosta.
Uma mulher é feita de arestas, buracos. fendas. Garganta, veias, sangue. Voz. Uma mulher é feita de palavras. Silêncios.
Uma mulher não tem explicação.
Não é preciso colocar uma faixa. Nem odiar os homens. Não é preciso ser sapatão. Nem não ser. Não é preciso devorar. Não é preciso engolir.
Deixar a fenda escritura entre as duas margens, "o interstício do gozo". É preciso saltar sobre a margem e se deixar levar pelo volume das linguagens. Deixar fluir. Fruir.

"Vocês querem que ocorra alguma coisa e não ocorre nada. Pois o que ocorre à linguagem não ocorre ao discurso": o que "acorre", o que "se vai", produz-se no momento do jogo. (Em tempo, Barthes: O prazer do texto).

quinta-feira, abril 02, 2009

poéticas da destruição


Destruir. Verbo transitivo direto. Demolir, arruinar, aniquilar (o que estava construído). Fazer desaparecer, dar cabo de, extinguir. Assolar, arrasar, devastar, destroçar. Matar, exterminar. Desarranjar, desorganizar, transformar, desfazer.

Na oficina realizada com Bolelli (diretor de arte do paulista Grupo XIX de Teatro), foi interessante perceber algo que eu já vislumbrava ou que, de certo modo, lá estava, submerso, no trabalho com o Obscena. A potência que há na ocupação de determinados espaços para a dramaturgia, ou seja, as possibilidades expressivas geradas nesta relação para a construção de ações, situações cênicas e até mesmo de roteiros ou argumentos.
Especificamente em relação à temática proposta por ele – Poéticas da destruição: tradição do agora – foi interessante perceber a relação direta com o tema que estamos (ou que estou) trabalhando: mulheres mortas. Tanto no aspecto positivo da idéia de destruição, como em seu aspecto negativo. Pois, se por um lado, a destruição está relacionada à idéia de ruína, extermínio – no sentido em que há uma aniquilação da mulher como gênero, principalmente no âmbito da violência doméstica – também está associada à idéia de desorganização, transformação, esta no sentido em que erica emprega em sua instalação mercado da buceta – “destrua essa imagem” – e no sentido que estamos empregando ao questionar a construção de uma idéia social e cultural do feminino e da mulher e as questões advindas daí. Tal noção perpassa todo o trabalho desenvolvido na intervenção mulheres mortas – que agrega o meu trabalho de dramaturgia da ação ao trabalho com os objetos do universo feminino desenvolvido pela lissandra – como aquele que reúne este trabalho ao de erica e ao da joyce em Baby dolls, uma exposição de bonecas.

Outra dimensão relacionada a esta se refere ao modo como os espaços da cidade constituem a referência de cada cidadão, tanto em termos de espaços antigos, abandonados, destruídos como em termos dos espaços “novos” que substituem aqueles: estacionamentos, shoppings. Para mim, nosso tema está intrinsecamente relacionado aos dois aspectos: do novo e do antigo, do shopping e dos espaços abandonados. Das barbies e das mulheres exterminadas, todas mulheres objetos. Pensar a organização do espaço é pensar a organização das situações cênicas e da dramaturgia.
A este espaço abandonado, que não atende à lógica do funcionamento da cidade, correspondem tanto os objetos que não servem mais para o consumo imediato como esta mulher que não sendo mais propriedade (70% das mulheres assassinadas no país são vítimas de seus ex-namorados, maridos ou noivos), não é mais funcional, útil, para o homem que a aniquila. A mulher exterminada é o contraponto e reverso (como a outra face da mesma moeda) da mulher plástica – esta que corresponde à última moda, ao último padrão de beleza – feita de botox, silicone, implantes, tinturas, embalagens, roupas.
A lógica capitalista invade o afeto. Pessoas são descartadas como coisas. É possível habitar esses espaços sem afetos? A partir das questões lançadas por Bolelli – e das correspondências feitas pelos artistas participantes com suas pesquisas, caminhos e materiais – nos lançamos na descoberta/ocupação de uma casa abandonada em frente à lagoa da pampulha, residência da experiência de destruição construção que nos foi proposta. Deveríamos trabalhar em duplas formadas de preferência por pessoas que já trabalhassem juntas ou tivessem elementos comuns – eu e erica nos escolhemos – nesses espaços onde as individualidades deveriam se apresentar, em harmonia ou não. Deixar o corpo escolher o espaço da casa que quer habitar. Em que quer se inscrever.

Devíamos chegar ali com um instrumento de destruição e um de escrita. Fui com os elementos que já trabalho em minha intervenção na rua – giz, recortes de jornal, pincéis atômicos – acrescidos de cola, fita adesiva, tesoura e martelo de bife. Reproduzo em seguida as minhas primeiras impressões na casa: “corredor branco banheiro liberdade corredor de cubículos lava roupas emancipa a mulher passeio promenade jardim? A natureza não me chama. Mas o branco. O liso. A natureza fechada, circunscrita. Pedaço de céu azul. Inscrições na parede. Números. Gaiolas de bonecas. Cubículos barbie. Jornais. Carvão. A lagoa fora. A paisagem linda. Janelas de vidro. Não. Cubículos. Prisões. Espaços de confinamento. De higiene, limpeza. O mofo umidade nega. O banheiro. A cozinha. Espaços de mulher. Embalagem. Plásticos. Carvão no fogão de lenha do fundo da casa. Pincel. O giz não funciona aqui. Desenhos. Inscrições. Sonhos de menina. Velha. Ao pé da escada. No andar superior. O ar sempre lá fora. Lá fora o pedaço do céu. Liberdade é um buraco na parede.”
O acordo foi mudo. O trabalho, em sua maior parte, também. Erica ocupou a passagem. Eu ocupei o cubículo. No espaço de liberdade não quisemos intervir. O acordo era tácito. Na porta, grades, castelos. O arame, cerca de objetos miniaturas de menina. O chão de açucar ("com açucar e com afeto, fiz seu doce predileto") é caminho para o cubículo, banheiro chão coberto de jornais. Recortes. Nas paredes de azulejos, sonhos de menina. No reboco, os coadores de papel. Os objetos de inscrição convidando à intervenção do transeunte. No último dia, sem dormir, acrescentei a marca de uma mulher morta e o sangue de catchup. ali, onde o sonho já não é mais possível.

Nina Caetano