agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

terça-feira, setembro 30, 2008

setembro das flores




O mês de setembro transcorreu em meio a mostras semanais: formato bem mais interessante, que atende à processualidade da pesquisa. Explico: antes vínhamos fechando os procedimentos/experimentos semanais no âmbito interno, restrito aos pesquisadores do obscena, com eventuais excursões de um e outro em suas aventuras cênicas. Só abríamos o trabalho para “visitação” pública nas mostras trimestrais: tal ação acabava por ter um aspecto de apresentação.
Com a abertura dos trabalhos de investigação ocorridos durante a semana, ou seja, no dia-a-dia da experimentação, da investigação em ação de cada um de nós, conseguimos, parece-me, atingir o caráter processual inerente à pesquisa que estamos nos propondo a realizar. Falo dos trabalhos públicos que ocorreram nos dias 08, 15, 22 e 29.
Nos dias 15 e 29, realizamos, eu e Lica, mais algumas investigações em torno do experimento que intitulamos cidade das mortas. No dia 15, já registrado em relato anterior, eu e lica nos encontramos mais cedo na casa dela, de onde saímos por volta das cinco e meia da tarde. Como já havíamos experimentado dias à tardinha, início da noite e gostado das possibilidades, optamos por começar o trabalho mais cedo do que o marcado para o encontro dos obscênicos. Nesse dia, novamente trabalhamos na praça da estação e na praça sete. Na praça da estação comecei a filmar a lica, ação logo complementada por Fernando. Também não demorou muito e apareceu a guarda municipal. Evento, tem que ter autorização. Como tem que ter autorização a palavra escrita dano ao patrimônio público pichação em giz. A palavra escrita, o registro, são marcas inegáveis de uma subversão da ordem. São marcas do perigo.
Na praça sete a escrita sujeita ao giz. Aqui, o chão é liso e possível. Praça reformada para descentralizar o centro, esse olho do furacão. Aqui, o fluxo de passantes nos engole e esconde. O centro da cidade é um circo e nele faremos o círculo, percorrendo todos os monumentos dessa praça para terminar no monumento MacDonald´s, com seu imenso M. mulher.
Quem é essa mulher? Não é possível explicar, é necessário construir.
No âmbito desse trabalho, a minha questão principal se relaciona com a prática de dramaturgia que tenho proposto. Dramaturgia do instante. Coincidindo com a investigação dessa escrita no espaço da ação, vários foram os encontros felizes ocorridos nesse mês das flores e tempestades de granizos: as discussões no projeto laboratório acerca do conceito de intervenção urbana, a presença marcante de Antônio Araújo, a tese de José da Costa sobre as escrituras cênico-dramatúrgicas conjugadas; que acabaram por me colocar diversas questões em relação a essa pesquisa: da relação com o espectador/transeunte, das possíveis formas de inscrição textual, do lugar do “dramaturgo”, do texto como elemento material e da dramaturgia como escritura/leitura. E ainda: a mim caberá o todo? Tais questões apareceram mais fortes após a experiência do dia 29.
Savassi. Dia 29 de setembro. Dessa vez, saímos do Sion. Lica propôs experimentar sonoridades e corporalidades animais. A proposta hoje era percorrer as lojas, vitrines. Interagir com o ambiente consumo. Sempre que possível – o chão ali não
ajuda muito – deixaríamos algumas mulheres mortas pelo chão. Ali, recuperei novamente a escrita no papel de propaganda. Escrita cartaz.
Mas não nos apressemos. Percorramos o percurso. Avenida Nossa Senhora do Carmo. Os carros em alta velocidade e os pedestres perplexos. Aqui o chão é liso. Bêbados nos tiram a concentração. Esse corpo mulher sacolas atravessa a avenida. Olha ela na passarela.
Esse corpo mulher sacolas perambula pelas lojas do Pátio Savassi. Gravar não pode. Só o celular democrático de uso geral. Todo mundo tem câmera Bluetooth mp3. as caras nas câmeras redes de TV. A câmera caracteriza normaliza o acontecido. Este se torna evento. Teatro arte propaganda marketing novela das oito. Filme. No mundo do mercado o mercado explica tudo? É necessário criar o atrito. O estranhamento. Essa mulher produzirá sonoridades corporalidades animais.
Por que você está vestida assim? E você? Por que a prancha escova progressiva inteligente jeans da moda o roxo bata pode. Por que o sexo forçado marido namorado um tapinha não dói. Homem faz sexo mulher faz amor lipoaspiração drenagem linfática. Tintura. Depilação epilação hidratação cauterização ballayage plástica botox silicone. Não é possível explicar, desculpe o transtorno. Estamos trabalhando para você.
Descemos a rua em atrito com as lojas que encontramos pelo caminho. Drogaria Araújo. A mulher super vaca maravilha rebola reboa seu sino nos corredores vidros prateleiras produtos. A ação é sutil. O som na drogaria. A pose em frente às lojas da Rede. Em frente à Travessa, o diálogo com a estátua da mulher escritora. A prateleira de bonecas da loja de brinquedos. Aqui, as escritas se multiplicam, geradas pelo atrito contato com esses mundos. Materiais. A prateleira rosa. O banquinho branco em frente aos contos de fadas da melissa. A estátua escritora e a boneca de papel da propaganda de desodorante.
Mulher. Uma obra em construção.
Quem é a obra de quem?
Filé. Delícia. Gostosa. Carne de primeira. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca jaca galinha piranha. Mulher melancia. Mulher da vida. Mulher da zona. Mulher da comédia. Mulher à toa. Mulher. A esposa em relação ao marido. Moça que atingiu a puberdade. Samy. 18 aninhos. Morena gostosa. Safada, sapeca como você gosta. 100% completa. Sexo anal total. 69 gostoso. Foto original sem retoque. Gosto de beijar. Amar. Cuidar. Transar. Mesmo sem vontade. Esquecer. Perdoar. Compreender. Sujeitar. Sacrificar. Esquecer. Esquecer. Embalar. Adestrar. Ensinar. Mesmo sem vontade. Educar. Amamentar. Brincar. Parir. Amar. Limpar. Passar. Jogar no rio. Na privada. Na esquina. Na esquina.
Desculpe o transtorno estamos trabalhando para você. Uma obra em construção. Barbies. Pollys. Princess all globe. Bonecas domesticadas pela TV. Hidratantes. Desodorantes. Perfex. Batom. Antiaderente. Drenagem linfática Jet bronze endermologia com arte é diet light in out enterrada menina de 14 anos encontrada morta e estuprada. Metida. Fodida. Arregaçada. Como você gosta.
Cerveja. Boa. Gostosa. Gelada.
Chega de fruta. Homem gosta é de comer carne.

Nina Caetano
(fotos de joão alberto de azevedo)

terça-feira, setembro 23, 2008

SOBRE DOIS PROCEDIMENTOS DE SETEMBRO

Segunda-feira de procedimentos nas ruas da cidade. Chego na Praça Sete à procura dos pesquisadores e me chama a atenção um pequeno grupo de pessoas lendo palavras e textos escritos dentro de desenhos e contornos de mulheres. Ah, sim, pensei......são as MULHERES MORTAS de Nina e Lica!!!


Logo depois chega Didi, quase nu, vagando perdido em meio à multidão que atravessa a praça a noite. Logo percebo os olhares incomodados das pessoas. Didi vai até um contorno de uma mulher morta e se deita ali, mas configura um novo espaço: está de óculos escuros e toma sol na noite da praça. Mais confusão e seu corpo desnudo e obsceno cria um acontecimento no centro da cidade. Um procedimento se alimenta do outro, o problematiza ou o desterritorializa.

Há gente que pára, gente que ri e gente que começa a xingar e reclamar dessa gente que "corrompe" as ruas de Belo Horizonte. Sou testemunha de um trabalho de alto risco e muita exposição. Realmente chego a ficar alterado e com as mãos frias.....

E logo depois vem atravessando a Afonso Pena uma mulher "absurda" de tão estranha, carnavalesca, objetada de coisas de casa e causando muita curiosidade entre os transeuntes. É Lica e sua caricatura dessa mulher domesticada que tem seu corpo violentado pelas boas maneiras de uma mulher culturalizada. Nina vem sempre junto e assim em "colaboração" elas rabiscam o corpo concreto da cidade e param o fluxo nas ruas.

Lica tem um trabalho mais teatral, ela parte de uma constatação do cotidiano real e vai para uma tentativa de ficcionalização dessa mulher. Já Didi tem um procedimento mais "fronteiriço": propõe um jogo ficcional para um outro interlocutor que recebe esse jogo como algo na ordem do Real. Marcelo Rocco traduziu bem esse trabalho: Didi parte do efeito do Real para atingir o Real.

Enquanto no trabalho de Lica e Nina percebi a questão do espaço e como cada lugar altera a potência do procedimento, no caso de Didi apontei a questão do LIMITE DENTRO DE UMA PROPOSTA ARTÍSTICA. Para o Didi fiz a seguinte provocação : até onde começa e até onde termina o jogo que você propõe ao outro nessa sua caminhada pela cidade? Você tem controle e consciência do jogo perigoso que você cria o tempo todo? O que você pesquisa nesse procedimento? O que você deseja pesquisar: estratégias de jogar mais lucidamente essa proposta ou como se colocar mais em risco? O fato é que se trata de um jogo tênue e que é necessário e salutar saber a hora de começar, continuar e parar.
Presenciar dois pastores pregando e exorcizando a pomba gira do corpo de Didi, que cantava e se divertia com tudo, ao mesmo tempo que jogava com esses homens, foi uma experiência maravilhosa e a constatação desse trabalho que coloca tudo em deslizamento: onde ficção e onde realidade? Fiquei muito impresionado com o que vi e vivi.
Foi mais uma noite de perguntas e muitas possibilidades de investigação.




Segunda-feira, 22 de Setembro de 2008. Teatro Marília. Porão. Procedimento coletivo envolvendo as pesquisas de Marcelo, Didi e Saulo. O universo da prostituição e do travesti. Seres da margem e da beira ? Várias questões se apontam.
Presenciamos momentos de alta exposição dos atuantes, até onde o limite e o constrangimento que vivenciamos?
Em meio a objetos espalhados pelo chão e a uma atmosfera de sexo, vertigem e agressividade, os performers Didi e Saulo se experimentam e nos experimentam. Beiram vários lugares jogando-nos na fronteira desse experimento: tempo real se mistura com tempo ficcional , ligações do celular ao vivo para profissionais do sexo causam interesse e até incômodo, enfim são muitos lugares sem definição borrando qualquer possibilidade de identidade.
Fico exausto com tanta perversidade, dor e exagero. Meus limites foram testados, mas consegui chegar ao fim. Momentos de nudez, cenas grotescas e lapsos e vazios invadindo o espaço o tempo todo.
Vejo o diretor Marcelo criando provocações para os atuantes e colocando músicas diferentes que sugeriam novas atmosferas de vivência. Houve um momento muito bonito: se escuta a Ave Maria e Didi de noiva está sentado solitariamente sobre uma caixa. O contraste cria uma imagem forte e traz sensações de abandono.
Saulo traz os belos textos de Caio Fernando Abreu em alguns momentos e Didi narra fatos e histórias de dor e violência. Num dado momento Didi fala de si mesmo e conta da relação com o pai e a negação deste diante da homossexualidade do filho. Parece-me que essa narrativa surge a partir do contato com uma gravata que trouxe a presença do pai. Didi então afirma : “Eu fico em silêncio e respiro”. Foi um momento tocante, de poucas palavras , mas onde se percebe que o sujeito ESTÁ ali.
Acontecem momentos em que os atuantes estão perdidos, fragilizados e até desesperados, tentando fazer algo, encontrar um sentido, mas estão exaustos, e isso é tão bonito de ver e partilhar.....
O trabalho falava dos CLASSIFICADOS, mas como , se também classificava a tudo e a todos? E a questão para os pesquisadores, como se apresenta? Como falar desse universo e deslocá-lo de um lugar já conhecido? Como dar um novo olhar? Se fala de qual é o valor de cada um no mercado da vida, quanto valem esses que se dizem pesquisadores de arte,ou melhor, meros pedaços de gente como toda gente?
Foram nas faltas, no caos, no desamparo artístico, quando não se tinha nada a fazer e a dizer, que tudo foi feito, dito e vivenciado.

Classificados

Dia 22 de setembro. Procedimento: Uma união entre exercícios textuais experimentados por Didi, Saulo e Marcelo. Os classificados dos jornais sobre venda e troca dos corpos usados como narrativa. Vários objetos no chão para serem usados e distorcidos em diversos momentos. O público (no caso, apenas o Obscena e poucas pessoas de fora) desce vendo os travestis de calcinha e sutiã se maquiarem. Saulo já experimenta ousar com o faxineiro do teatro Marília, flerta com ele em uma postura de brincadeira confortável, pois ambos se conhecem. Didi começa a ler os claissificados e decide ligar ao vivo para os travestis e garotas de programa na frente do público , colocando questões sobre o universo da prostituição. O celular fica no alto falante para que todos ouçam a transação.
Didi se oferece para trabalhar, pede dicas de comportamento e procedimentos em agências para prostiuição.
Flerta com os garotos de programa, depois transforma o risco em piada, saindo do lugar de investigação para o trote. Desvia o olhar para o lugar cômico. depois Saulo, começa a narrar várias desventuras, propondo um misto, juntamente com o Didi, sobre histórias inventadas e histórias reais de suas vida particulares. didi vê uma gravata, narra sua infãncia e o desejo de seu pai em vê-lo casado, masculinizado, engravatado. Saulo usa suas narrativas de Caio Fernando Abreu, ambos falam de seus sonhos, em uma miscelânia de ficção, tempo real e vidas atorais: o olhar de casamento para o travesti, ter filhos, o cotidiano da rola, "o mundo te engole" - diz Didi abrindo e fechando o ânus. Ambos ousam dançar, proponho musicalidade para envolver, em certos momentos, jogos dramáticos,os atores interagem pouco com a música, vestem e desvestem roupas, constróem performances mescladas de drag queen e travestis. Saulo mantém uma voz forte em uma mistura de masculinidade e homo eretus. Dançam, desfilam para o público. As vezes são agressivos, como uma arma apontada no cu, na boca.
Tudo é normal: rola, cu, dinheiro, rola, cu, dinheiro, o círculo diário do programa. Didi desvia o caminho para um desfile de moda.
Percebemos cansaço nos atores, esvaziamento, "o que faço agora?" pensam os atores, e propõem mais e mais, se esgotam. Peço para parar.
Na discussão ouvimos opiniões interessantes, sobre o olhar da ligação, como conversar ao vivo com um travesti pelo telefone sem expô-lo ao lugar de produto novamente? como falar da margem sem mantê-la no mesmo lugar? Érica diz que todos nós temos um preço: para alguns pode ser uma pequena soma de dinheiro, para outros um simples Eu te amo!, outros um jantar, etc. como nos colocamos neste lugar? o caos iunstaurado no laboratório pode desviar? etc . e etc.

segunda-feira, setembro 22, 2008

A cidade das mortas: Experimento cênico inacabado.

Quem é a obra de quem? Mulher: uma obra em construção. Desculpe-nos o transtorno. Estamos trabalhando para você. Não é possível explicar, é necessário construir.

Alguma hora da noite e estamos na Praça Sete.
Uma mulher caminha carregada de sacolas. Seu corpo objetos. Embalagens plásticas metalizadas produtos de limpeza cosméticos mantimentos eletrodomésticos utensílios do lar higiene pessoal familiar.
Uma outra mulher a segue, nas mãos uma embalagem de creme de cabelo da qual saca seu instrumento. Um giz. A dramaturga vai desenhar e escrever continuamente. Narrativas jornalísticas poéticas científicas dicionarescas inventadas documentais. Escritas do momento.
A mulher objetos caminha. Instala seu corpo no espaço. Nos monumentos. Nas ruas. Destaca a arquitetura. Deita-se no chão.
A dramaturga desenha. A Cidade das Mortas. Seus corpos objetos no calçamento da cidade. Os anúncios das prostitutas de Curitiba devem percorrer esses corpos mortos, desenhos a giz no chão. Também devem estar lá o verbete do Aurélio e o inventário de tarefas inúteis. As manchetes e estatísticas. E os desejos de consumo das mulheres domesticadas pela tv. A dramaturga já começa a criar preferências. Ah, adoraria poder deitá-la no asfalto. Desenhá-la em meio aos carros. Parar o trânsito.

Mulher. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Mulher da vida. Meretriz. Mulher à toa. Meretriz. Mulher da comédia. Meretriz. Mulher da rua. Meretriz. Mulher da zona. Meretriz. Mulher.
Parir. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Amar. Sujeitar. Sacrificar. Lavar. Passar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Aquecer. Embalar. Beijar. Lamber. Chupar. Dar de mamar. Transar. Mesmo sem vontade. Mulheres domesticadas pela tv. Mulheres eletrodomésticas.
A mulher em relação ao marido. Esposa. Rolinhos pregadores talhares bicos de mamadeira chupeta fralda peneira vassoura escova botão linha tampa bombril perfex avental sutiã calcinha meias batons potes hidratantes depiladores filhos planos de saúde férias marido. Feia. Gorda. Velha. Usada. Jogada fora.
A gente pensa que é mulher e é só fêmea. Bichinho de estimação. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca. Galinha. Piranha. Filé. Gostosa. Gostosa. Samy. 20 anos. Morena mestiça. Safada e sapeca. 100% completa. Sexo anal total. Gosto do que faço.
Corpo receita sexo beleza corte cabelo cor unha esmalte batom inverno verão diet light in out Enterrada a jovem de 14 anos encontrada estuprada e morta.
Moda revista filhos baby sitter babá empregada carro seguro colégio celulite flacidez plástica estética beleza jet bronze limpeza de pele completa eletrólise depilação de última geração massagem redutora massagem relaxante drenagem linfática vácuo com endermologia e arte.
Uma mulher é feita de arestas, becos, buracos. De sangue, veias, garganta. Uma mulher é feita de voz, pernas, pensamento e útero.

A mulher objetos atravessa as avenidas, avança para a Praça da Estação. Caminha entre os pontos de ônibus e deita-se na passagem dos pedestres.
A dramaturga tem especial afeição pelas passagens de pedestre. O chão é liso e inclinado. O espaço é razoável e atrapalhamos o trânsito.
Nina Caetano. BHZ. 15 de setembro de 2008.






sábado, setembro 20, 2008

15 de setembro: Louca por oração

As gazes amarradas no corpo... a camisola rosa clara... o batom borrado na boca e coragem, ousadia para o que viesse a suceder na rua. Trabalhar no limite tênue entre o real e o fictício é perigoso, mas também é muito instigante. Mãos à obra: sai do Marília carregando um objeto: uma imagem de santinho quebrada. Antes de chegar à fonte localizada em frente ao Palácio das Artes, achei uma lata velha de biscoito. Levei-a até a fonte e lavei. As pessoas olhavam desconfiadas, tentando entender que Ser era aquele: Homem ou Mulher? Bem... depois de lavar a lata foi seguindo em direção á praça sete e encontrei um outro objeto: um pau amarrado no outro, uma espécie de cruz. Peguei-o e coloquei nas costas. Um cara passou e comentou: “É um apocalipse!”. Uma louca travesti carregando uma imagem de santa quebrada e uma cruz... isso choca os transeuntes com toda a sua tradição religiosa. Foi seguindo e me deparei com as silhuetas de um corpo de mulher desenhado na calçada( foi o procedimento de uma outra atriz: Lica). Deitei sobre esse corpo, colocando a minha lata e sobre ela a imagem da minha santa quebrada. Atrás da lata a cruz e comecei a rezar! As pessoas pararam ao meu redor sem entender nada daquela situação! De repente uma “mano” fala: Nossa que bizarro! E eu respondo: Cala a boca, não se pode nem mais rezar! E ele retruca: Fica na sua e continua rezando! Nesse instante eu percebi que passei dos limites e aos poucos fui saindo daquela instalação. Atravessei a Avenida Afonso Pena e montei a mesma instalação perto de dois evangélicos. Um deles se questionaram: isso é homem ou mulher? O outro respondeu: é Pomba Gira! Comecei a rezar deitada sobre o chão com as minhas nádegas quase expostas até que passou uma senhora e me disse: Pode arrumar a sua camisola, você já viu, né? A gente já é chamada de tudo, as pessoas já não tem respeito... Eu respondi que podia e ela puxou minha camisola. Os dois evangélicos continuavam a me observar até que um deles veio em minha direção e me entregou uma oração. Ele colocou a mão na minha cabeça e começou a orar, pedindo para eu repetir. Eu resistia, mas ele continuava. Houve um instante que ele disse que eu tinha que mudar de vida, que eu tinha que ser alguém na vida, tentar trabalhar sem ficar na safadeza. E eu disse: É muito fácil, né? Você quando chega em casa tem alimento na geladeira e eu? Ninguém me dá emprego porque sou travesti e por isso que sobrevivo na rua, muitas vezes fazendo programa! Ele me disse: se você aceitar Jesus, em uma hora você vai conseguir se alimentar e eu respondi: Não acredito em Papai Noel. (Silêncio...) Ele me convidou par ir à uma lanchonete e me deu uma coxinha, um pão de queijo e um suco de caju. Passou o endereço da sua igreja e me convidou para ir lá e me disse: Sai dessa vida! Na Bíblia Jesus disse que o homem foi feito para ficar com mulher. Eu tinha um amigo que era assim... e ele curou depois que encontrou Jesus. Eu olhei no fundo dos olhos do evangélico e disse: Jesus me ama! Ele ama a todos, mesmo com as opções sexuais. Ser gay não é doença! O fato de eu ser travesti não vai impedir que eu seja um homem bom! Quantos pais de família que freqüentam igrejas e que estupram seus próprios filhos, matam-nos, traem sua mulheres. E aí? Eles são homens que gostam de mulheres! E são íntegros? Tem respeito? São bonzinhos? Acreditam em Deus? São esses tipos de homem que vocês gostam que freqüentam a igreja? Eu posso fingir ser uma coisa, mas estarei me enganando e enganando os outros. Travesti é gente, é homem, tem dignidade, respeito! O amor à Deus e ao próximo não está na sexualidade, mas no espírito! O espírito não tem cor, não tem sexualidade! O evangélico me disse: Você é estudada... desculpa estudado? Eu disse: Boa noite!Terminei o meu procedimento voltando para o Marília.

Sexta feira 02 de setembro– Transgressão política

Sexta feira – Transgressão política

Foi o procedimento de Marcelo Rocco e a proposta era sair de travesti pelas ruas como candidata à vereadora, ou seja, prometendo legalizar a prostituição. Começamos às 19 horas. Eu estava maquiado, cabelos soltos, um vestido branco que aderiu ao meu corpo, um sobretudo preto e uma bota preta. Estava impecável! Dessa vez, as pessoas não tiveram muitas dúvidas a respeito de minha feminilidade, pois todos, de modo geral, acreditavam que eu era uma mulher e prostituta. Começamos nossa peregrinação saindo do teatro Marília. As pessoas olhavam muito e começamos a entrevista: “Você concorda com a legalização da prostituição? Você acha que legalizando, os travestis, as mulheres terão mais proteção, com direito às férias, carteira assinada, etc? E o que você acha do SUS dá assistência para os transexuais quanto às cirurgias plásticas de colocar silicone?”. Eu e Marcelo percebemos que a maioria dos homens eram mais favoráveis do que as mulheres sobre a questão da legalização. Muitas foram as respostas, mas a que mais me impressionou foi a de uma casal que nos disse que se houver a legalização muitas crianças irão se prostituírem. Perguntamos a um catador de latinhas e ele disse que aceita a puta, mas não as drogas. Entramos numa loja Evangélica e vendedora disse que na Bíblia o homem foi criado para ficar com mulher e vice-versa, constituir uma família, etc. Ela não concorda em legalizar, mas é uma opção de vida dessas pessoas, pois cada um tem o livre arbítrio. Enfim, o mais interessante disso tudo foi que quando eu ia lançando as minhas propostas como candidata, alguns homens e mulheres me olhavam de cima a baixo, sobretudo os homens, mas logo em seguida que eu dizia que era travesti os olhares mudavam e o preconceito se expandia...

sexta-feira, setembro 19, 2008


Estado OBSCÊNICO dia 18 de setembro de 2008 (9910-181-91-10-1).

Hoje, uma quinta-feira chuvosa e fria, após o trabalho chego em casa. Um chá para aliviar um estômago cansado. Um convite para ver um documentário: ‘Meninas’, de Sandra Werneck. Quatro meninas do morro dos macacos na rocinha. De 13 a 15 todas estão grávidas. Os pais: um traficante; um estudante; um ex-avião, pai de dois por sinal. Escola? Lazer? Trabalho? Nada. As meninas são responsáveis pela casa e pelos irmãos mais novos. Os rapazes ou estão no crime ou estão em subempregos. Não há perspectiva. É o ‘mercado da buceta’ imperando seu ‘modo operante’ – fabricação de mão de obra barata, alienada e que permanece em faixa etária ideal para a manutenção do mercado. Rapazes morrem cedo, as meninas produzem filhos anualmente e muitas vezes de pais diferentes. A mais nova das entrevistadas é viúva aos trezes anos. Não que nesta idade minhas avós já não estivessem de mãos entregues a rapazes para se casarem em breve e minha bisavó com esta mesma idade já estava a um ano de se casar com um primo de segundo grau com 23 anos. Mas, o que se passa é mais delicado. São meninas que desejam ter filhos para serem reconhecidas como seres humanos. Elas desejam ser mães para terem uma cama para si e o filho, para terem comida a mais, para terem o título de mãe. Elas não têm condições de escolher uma profissão, logo querem ser mães. Esta realidade existe a alguns quarteirões da minha casa. Passo de ônibus e vejo meninas a andar com crianças pelas mãos, no colo, no ventre. Não brincadeira mais, elas não têm o direito de sonhar e ser alguém, alguém que realiza algo mais que cuidar e procriar. Imagem estagnada da mulher. Da função e do exercício pertinente a entidade social feminina. Daquilo que o sistema reserva a mulher. Enfim, a mediocrização da mulher ao longo de séculos. E agora deparamo-nos que esta realidade.
Sinto-me revirada por dentro. Três partos são filmados. Um uma violência. Sinceramente, é uma violência. Três cesáreas e um parto normal. Meu ventre chega a doer. Doer. Reviro-me no sofá. É triste vê-las sair do hospital cansadas, felizes e sem a menor idéia do que as espera. Os pais tensos, sem dinheiro. Casas apertadas. As irmãs mais novas seguem o mesmo caminho e treinam sem cessar ao longo do dia: imitam os cuidos com as bonecas. O gesto se prolifera. A função se apresenta e se representa na brincadeira. A imagem se estagna, ao longo de anos ela é repetida às meninas mais novas e por estas assimiladas. O que fazer? Quando percebo no procedimento mesmo da ‘brincadeira de casinha’ os corpos são dóceis aos objetos, nos os acatamos com nossos gestos. Claro, somos mulheres conscientes e em exercício de nossa feminilidade e mesmo assim somos dóceis.
Ozana já nos falara dessa realidade quando nos encontramos no início do ano. E hoje sinto o mesmo engasgo, ou hoje sinto mais? Sim. Eu sinto mais. Isto é mais real. Percebo mais claramente o que é programado em mim e tendo lidar com isso todos os dias. Este é meu exercício performático: escapar do ‘mercado da buceta’. Reconhecendo diariamente os meus gestos repetitivos, minhas ações programadas, meus momentos de ausência, de displicência diante de mim e da minha feminilidade. Puxo o períneo respiro fundo e sigo em frente. Sempre adiante.
.SARAVÁ.

domingo, setembro 14, 2008

Um ser no Asfalto

Quinta – feira: Um ser no asfalto

Foi o dia do meu procedimento que ocorreu na praça sete, na avenida Afonso Pena. As 18h 40 foi para o camarim do Teatro Marília e comecei a me vestir: uma camisola preta curta, batom borrado na boca, óculos escuro, pés descalços, algumas gazes cobrindo o corpo. Estava tudo preparado, bastava a avenida para saudar os meus passos! Sai do Marília e foi caminhando em direção à praça sete. Ao passar do lado do Palácio das Artes entrei na fonte que ficava à sua frente e comecei a dançar! Dançava sobre uma chuva de cores, reflexo das iluminárias afixadas no chão dessa fonte. Parecia uma criança!E eu saltitava, corria, e ao mesmo tempo me policiava com medo de ser pego por alguns policiais. Foi uma imagem bonita de um ser homem-mulher, meio puta, meio louca ( as pessoas não conseguiam denominar essa figura andrógena ) versus a classe elitista. Uma interferência perfeita,que feria toda a estrutura arquitetônica do grande palacete de artes. Em seguida, segui em frente pela avenida e parei em uma esquina. Escutei vozes de muitas pessoas orando. Olhei para o alto de um prédio e de lá surgia os murmurinhos. Ajoelhei na calçada e olhei insistentemente para o alto, batendo palmas e seguindo o culto evangélico. Os transeuntes passavam e me olhavam estranhamente e na entendiam nada! Até que um pivete sentou–se comigo na calçada e conversou comigo, perguntando onde eu morava. Eu respondi: em frente ao hospital João XXIII. Ele tirou do bolso muitas moedas de vários valores e me ofereceu uma única moeda de 0,25 centavos. Ele disse: Você quer essa moeda? Dá pra comprar uma bala, um docinho. Eu agradeci e perguntei a ele onde ele morava. Ele me respondeu que há alguns dias atrás ele morava na cadeia. Nesse instante eu me arrepiei por inteiro! Tentando disfarçar de maneira mais harmoniosa e o mais natural possível e perguntei: Cê tem um cigarro aí? Ele respondeu que não e me contou que estava preso porque matou seu irmão. Eu perguntei: Ele era chato? Ele me respondeu que era insuportável! Eu não entrei em detalhes e falei que precisava dar uma andada! Despedimos um do outro e fui seguindo... o dono da banca de jornal me deu uma bala e um pirulito quando eu passava! Agradeci e finalmente cheguei na praça sete. Parei em frente a um bar de música ao vivo e fiquei dançando. Vários rippies ficaram a me vigiar e um deles me parou e disse: sabe o que eu mais gostei em você? A sua loucura... esse seu jeito de dançar feito bombinha livre... esses pés descalços, a sua liberdade é ótima! Você é loucona! Eu gosto disso! Ele me convidou para bailar e eu aceitei. Nesse momento estava tocando a música: Bem - te – vi! Dançamos muito e os amigos dele ficavam empolgados! Esse rippie falou que era boliviano e que não encontrava sentido de vida aqui em BH, mas que naquele instante estava começando a aparecer uma luz de estrela em sua vida. Ele disse: Você é a mais linda estrela de Belo Horizonte! As estrelas merecem ser tratadas de forma especial e por isso vou te dar um anel. Ele rapidamente fez um anel e o colocou nas minhas mãos, seguido de muitos beijos sutis no meu dedo. Dançamos mais um pouco e eu pedi para que o amigo dele ( um hippie de mais idade ) segurasse meu pirulito enquanto dançava! Comecei a cansar e o hippie me pediu um beijo e eu negava. Até que chegou um momento que um outro amigo desse hippie boliviano puxou minha camisola na tentativa de ver o meu peito e ele disse que eu era travesti, veado! Eu rapidamente me mostrei aborrecida com a situação e sentei no chão. O boliviano foi se afastando de mim, enquanto o velho hippie dava esporro no outro hippie, dizendo: “ela pode ser o que quer, ela é livre! Tenha mais respeito seu escroto de merda! Sai daqui sua merda!” O velho começou a dar bordoadas nos braços do outro hippie até ele sair. Depois ele me disse para eu não me importar com esses ratos! Eu disse que queria ir embora e ele me pediu em namoro e me convidou para a gente namorar em frente à Igreja situada na rua Espírito Santo. Eu disse que não podia e que estava cansada! Ele delicadamente me deu um beijo na testa e disse até qualquer dia! E eu fui com minha loucura a transitar por entre lixos e gente, entre olhares repressores e olhares de piedade.

sábado, setembro 13, 2008

O copo de champagne sempre deve estar cheio

Dia 08 de setembro. Reunimos no Teatro Marília para discutir datas, horários e procedimentos em diálogos. Percebi que muitos lugares estão em construção correlacionados,vejo que pude começar materiais a partir das mostras de outros pesquisadores e unir forças para construir uma terceira coisa (que ainda não sabemos o que é) entre uma proposta e outra.
Os materiais possíveis dos colaboradores estão tentando unificar, ou pelo menos dialogar mais a partir da idéia do outro.
Falamos também sobre os seminários e possiveis convites de grupos alheios ao Obscena para proporem dinâmicas, ou algo teórico-prático para o público que será convidado.
Como nossa agenda está bem lotada, optamos por acrescentar os vídeos em dias extras do encontro do Obscena.
A Érica pontuou uma questão que também me preocupa: como manter o público para o debate, já que agora as mostras são simultâneas? como fazê-los não se dispersarem, como manter o debate neste certo caos de mostra e ver a percepção do espectador, já que um ponto forte da pesquisa é construir junto a ele e com ele?
Ao observarmos a mostra dos pesquisadores também seremos públicos, e poderemos pensar em diversas colocações diante das propostas que aparecem aos nossos olhos.
Vi a proposta do Idelino corporificado na Lica: Compreendi melhor a sutileza de dois objetos, na verdade a ausência de um, pois Lica estava descalça, e a existência de outro - a taça de champagne em suas mãos.
A sutil decadência de uma mulher de vermelho, desvairada, caminhando pelas ruas ao redor da praça da Liberdade.
Lica fez juz ao nome da praça em sua total liberdade de sentidos desconectada do ser social. do corpo cotidiano do trabalhador discreto e cansado. O vermelho mostrava a sensualidade de uma mulher no cio, a procura, quem sabe, de alguém para manter seu copo cheio, um homem viril para uma mulher audáz, sonora em suas risadas.
Percebo que a ausência de um objeto- os sapatos e a super exposição do outro- o copo, alteravam a rotina daquele lugar, corporificando o desejo vermelho da mulher da boca vermelha, sendo observada por atentos olhos masculinos, presunçosos na possibilidade de ter algo, cujo pagamento talvez seria um pouco de alcóol..

quinta-feira, setembro 04, 2008

calcinhas e doenças

11/08/2008

Saída. Malinha, roupa e corpo. Caminhada até esquina. Troca como entrega. Vestir e desvestir em público. Alongar os músculos. Alertar os olhos. Caminhada. A rua pode atacar a gente. A gente pode acatar a rua. A gente pega ônibus, olha as horas, dobra esquina, reclama no trânsito, faz ocorrência, atravessa na linha, sobe degrau, circula a praça, trabalha, vai pra casa. A gente faz tudo sem saber por quê.

A gente não gosta, não conhece e não sabe novidade. A gente vai.

No sinal, vendendo calcinhas. Usadas, novas, no saco, no corpo. Ninguém quer comprar. Olhe a calcinha! Veja a calcinha! O tempo em verde para agir. Não há resposta visível. Não há retorno. Vendo grávidas lingeries. O carro vai e leva pendurado no retrovisor. A calcinha me condena? O motorista joga fora.
Um cara, que apareceu na feira passada, retorna. Ele quer filmar. Ele acha que vou lá todo dia. Ele é louco. Ele põe a namorada pra ouvir o texto. Ele recolhe a calcinha jogada pelo taxista. Ele fica aflito com a polícia. Ele fica com medo da câmera. Agora gostaria de conversar com ele. Ele é mais fácil do que eu. Falar de mim é pior.

Idelino fez uma intervenção com a câmera. Ele se escondeu mostrando-se. Gostei muito. Disse para o cara que estava registrando manifestações de rua em geral. Gostei da sensação de ser registrado, mas não ser protegido pelo cinegrafista. Só pra lembrar, o dia em que saí atrás de Lica, ouvi uma mulher falando ao telefone mais ou menos assim: “Tem uma mulher louca ali vestida cheia de objetos. E não tem ninguém filmando ela”. A câmera pode dar o aval de artista. A câmera serve de roupa.

Sobre a mostra, precisamos de mais organização, eu acho.

Seria o mesmo sinal. Quero vender doença venérea (atravessado por Saulo). Na calcinha, na camisinha, na seringa. Quero uma calcinha de cada mulher obscena; uma que não volte mais. Rumo tomado também a partir deste diálogo com um transeunte:
É sobre doença? (espichei a calcinha)
Mas não tem nada escrito! (reaproximei a calcinha. Olhou de perto)
Ah, é sobre doença!

E a mulher, onde está? O feminino vende. O feminino atrai. Homem com elementos femininos vende doença venérea com mais facilidade. Quero realizar. Talvez em outro lugar que não Belo. O tempo que não me deixa.

Tenho sífilis, cancro mole, candidíase, herpes simples genital, gonorréa, condiloma acuminado / HPV, Linfogranuloma venéreo, granuloma inguinal, pediculose do púbis, hepatite b, AIDS. Quem quiser, é só descer do carro e pegar. Tem que pagar, porque nada disso eu ganhei de graça.

terça-feira, setembro 02, 2008

SEJA REALISTA: LUTE PELO IMPOSSÍVEL

Sexta-feira - O procedimento: Travesti candidata à vereadora. a defesa das questões sobre a legalização da prostituição, do direito à composição hormonal no SUS, ao aborto. Trinta pessoas entrevistadas nos arredores da praça sete.
O que me levou a este lugar? Talvez estava perdido após ter saído da vitrine, algo que começava a delinear, uma pesquisa de profundo interesse que se encerrou na frente do Marília.
Andamos pelas ruas entrevistando homens, mulheres, casais, idosos. Queríamos diversificar a composição da enquete.
As questões que se levantaram foram determinadas por inúmeras respostas, ouvimos:
"-A prostituição, o adultério, salvaram meu casamento. disse um senhor
-O homem foi feito para a mulher, a mulher foi feita para a submissão do homem. disse uma senhora
-O governo domina o corpo da mulher, decide por ela. falou uma gerente de compras
-O travesti é o setor da prostituição mais discriminado - disse uma jovem
- Não há problema em se prostituir, mas não na rua. Disse um segurança"
muitas outras falas.
Percebemos que a imagem é importante neste lugar, em que podemos fazer, mas não nos mostrar à exposição pública, a legalização da prostiuição, o direito à carteira assinada, à férias, à aposentadoria de uma profissão milenar, que sustenta grande parte da economia no Brasil, não pode ser feita, mas pode se continuar com ela, às obscuras, gerando lucro fortíssimo no corpo quase escravo, explorado nesta grande sede urbana, em que a movimentação é maior que as do Shopping Cidade, em que os clientes brigam por uma liquidação de carne nova, em que estes mesmos comem os sonhos de meninas do interior (na maioria delas), e se alimentam deste corpo forte, mas cheio de arranhões do tempo. Um homem entrevistado disse que, caso a prosituição venha a ser legalizada as crianças irão se prostituir!! mais??
Outros acreditam que o salário das prostitutas irão diminuir... Pode ser...
Percebemos que os homens eram mais favoráveis à legalização que as mulheres, talvez porque são os que mais usufruem deste serviço...
O moralismo sempre caminhava nas questões munido de argumentos bíblicos: É pecado!
E este aumenta qundo se fala da prostituição do travesti: É pecado maior ainda! Pois é uma humilhação um homem deitar com outro homem...Um homem trajado de mulher, contra a natureza: o sexo anal é pecado!! isto tá na Bíblia!!!
Um catador de latinhas: "Prostituição sim, dorgas não!" Panfletário, não!?
Isto seguiu a noite toda... Duas educadoras expuseram que o aborto pode ser evitado com camisinha.. a prostiuição aumenta o índice de traição... será que existe alguma prostituta que obriga a ereção no homem? Invade sua casa à procura de sexo pago?
Percebo o efeito placebo de se continuar na obscuridade, sem regularização, sem quantificar e assumirmos que somos hipócritas, aceitando a venda legal dos corpos, pois irá continuar querendo ou não ...

Vestida de gase e vento

Quinta feira: Didi sai às ruas vestida de gase e vento. Uma profusão de loucura e alcoolismo. Os transeuntes tentam classificá-lo, enquadrá-lo em um lugar da memória - bêbada, hippie, louca, sempre louca. A loucura parece a experiência do não conhecimento, da não identificação, mais uma vez, da margem. Um mendigo tenta conversar com ela, fala de sua vida na prisão, confessa em alguns minutos seu mundo particular, encontra uma amiga nos olhos dela. Ambos sentam entre classificados de jornais e ratos nas ruas.
Didi resolve dançar no Palácio das Artes, em frente à fonte. Aquela visão parecia um rasgo na elite, um arranhão naquele lugar erudito. As pessoas olhavam e riam. Um militar ia fazer algo, mas riu. Absurdo para ele, e todos observaram a dança na fonte. Didi enfrentou, ao meu ver, uma linguagem social determinada, a linguagem da elite, rompeu com este lugar, misturou dois mundos, ainda , é claro , do lado de fora, uma pesquisa interessante para dar continuidade no próximo mês.
Didi vai à praça sete, vestida de gase, preto e vento. os hippies desejam a louca livre. Música ao vivo: Garota de Ipanema. Didi dança a música acreditando ser feita para ela. e Didi gira, deixando um embalo, uma valsa. Um hippie a tira para dançar, oferece um anel, e a encosta em seu corpo em um romantismo exacerbado. Tenta beijá-la, é repelido. Confessa coisas de si, mais coisas intimas que Didi tem nas mãos, nos ouvidos. Esta identificação que ocasiona onde passa, relaciona-se com sua loucura, com seu corpo no espaço, a igualdade aproxima as pessoas, cria comunhão. Didi vai embora, deixando a loucura do lado de fora do Marília.

segunda-feira, setembro 01, 2008

'o mercado da buceta' - objeto miniaturizado + espaço urbano = representação em uma ação não representacional




Agora são 10:29 da manhã, segunda-feira, dia 01 de Setembro. O mês do cachorro doido passou e ela sente-se como uma cadela suja e só. Chora em seu quarto. Sente-se entupida e ao mesmo tempo completamente vazia. Na última quinta-feira, dia 28 da Agosto ela cumpriu com seu procedimento: 'o mercado da buceta'. Reuniu algumas mulheres e um homem e descera para a Alameda Ezequiel Dias, onde há 28 anos atrás ela foi parida, ou melhor foi puxada pra vida, pois sua mãe com 42 anos não tinha dilatação suficiente para cuspí-la para o mundo. Isto deu-se numa segunda-feira, dizem que quem nasce nas segundas trabalham muito a vida toda. E ultimamente é só o que ela tem feito: TRABALHAR. Um tanto para pagar as dívidas da vida moderna, um outro tanto para não sucumbir a dor que ainda habita em si.
Às vinte horas estava ela já molhada, com uma sacola de brinquedos na mão esquerda e um balde d'água na direita. Ela quer lavar suas dores e também limpar de si toda a conformação que o 'mercado da buceta' a imprimiu durante esses 28 anos de vida. Acompanha o procedimento de Patrícia, em seguida o de Saulo e enfim, convida o público a acompanhá-la a Alameda. Está nua por baixo do vestido transparente e molhado. Mas, as pessoas não querem se incomodar com esta mulher molhada que desce a rua. Medo? Indiferença? É teatro? Enfim, seja o que for é melhor continuar no ponto de ônibus e ir para casa descansar para o outro dia de trabalho...
Escolhe um canto mais iluminado da calçada do Parque Municipal, quase em frente ao Hospital da Previdência, onde nascera. Ali será o local do despacho. Chama as mulheres para brincar de casinha e pede ao rapaz que apenas observe. Ele é gentil e mantêm-se onde nós o permitimos ficar. Ela distribui os brinquedos, primeiro Lica ganha uma vassoura e um rodo, ela varre o espaço para construirmos a casinha. Nina ganha o jogo de chá, Patrícia o jogo de bloquinhos de montar 'o castelo', as demais ganham panelinhas, fogão, cestinhos... Todos os objetos são miniaturas.

"A miniatura é uma das moradas da grandeza."

"A miniatura estende-se até as dimensões de um universo. O grande, mais uma vez, está contido no pequeno."
Gaston Bachelard, 'A poética do espaço'

Trabalhar com objetos que representatam 'o quê' a sociedade reserva à educação da mulher, estando estes em forma de miniatura é o que a interessa. Concentrar imagens dilatadas. Condensar na miniatura a história que há séculos vem escrevendo para a mulher. O manual de boas maneiras pequeno burguês exemplificado minimamente e universalmente. ?O 'mercado da buceta' em miniatura dentro do grande mercado que é nossa vida cotidiana.
Ela sente-se como uma carne no açougue. Uma carne tenra, suculenta que muitos querem comer, mas nenhum até agora quis germinar, frutificar. O homem consome a mulher e a ainda a presenteia com os objetos que farão suas vidas mais gostosas e fáceis. E na loja de brinquedos isto está bastante claro: liquidificar, batedeira, geladeira, carrinho de supermercado, bebês, bonecas sexis, tudo em miniatura para criar e educar 'mini sexis donas de casa super poderosas vacas maravilhas' que à noite irão se entupir de cremes e remédios anti tudo que é natural para manter uma aparência representativa da boa mulher comedida e respeitada.
É possível manter-se fora desse esquema? É possível amar um homem sem ser sugada por ele? É possível conceber um filho e não ter que se responsabilizar sozinha por este ser humano nascido de dois seres humanos? É possível ser desejada mesmo não sendo conivente com a beleza midiatizada programada escolhida? É possível ser quem sou? Ou mesmo exercitar o meu ser sem ser?
Ela e Lica decoram a grade do Parque com retalhos de seda enquanto as demais recolhem folhas secas para brincar de comidinha. Não infantilidades nas ações, há o jogo, o corpo prontificado por uma memória de infância suscitada pelo objeto. A tradição que constrói e transforma nossos corpos em 'corpos dóceis'. Em roda as mulheres já serviram chá ao rapaz e assim ela o permite sentar-se.
Uma mulher se aproxima quer saber o preço da calcinha que foi colocada na grade. Ela pergunta pra mulher quanto ela daria pela peça _uai? eu num dou preço não o preço quem tem que dá é ocê que tá vendendo! sua voz estão meio amolecida pela bebida, mas ela toma uma coca-cola.
Lica assume a negociação. Entre preço e perguntas a mulher desabafa _ eu nunca tive a oportunidade de brincar de casinha, já pequena eu tinha que ajudar em casa, só agora com minha filha que eu posso brincar. _minha filha tem Lupos, eu descobri esse ano. _Mas quanto é a calcinha mesmo, cinquenta centavos?
E assim, a mulher ficou ali com as outras mulheres e mais duas outras vieram muito timidamente, olharam mas não quiseram olhar-se no espelho. Outras olharam-se, ajeitaram os cabelos, assim como Ana, que muito traquilamente admirou-se. Um momento belo. Uma mulher reconhecendo sua imagem no espelho vagabundo.
Ela não olhou-se. Sabia exatamente como estava e não queria mais que a imagem central construída. Os cabelos molhados escorridos na testa, os seios eriçados, o ventre e bunda proemientes, pés no chão e a menstruação escorrendo pelas pernas...
Ela precisa de sangue, ela precisa de espaço. Ela não quer 'mais do mesmo' e caminha em busca daquilo que não é premeditado e sim daquilo que é ação.
Por fim, após angariar duas calcinhas a um real cada a mulher se despede das qeu brincam, fala sobre generosidade e humildade antes de ir, abençoa a todas e vai, não sem antes querer levar consigo o rapaz que nos acompanhava. De fato é um moço belo.
Ela vai para o centro da casinha. Coloca numa cestinha coberta de seda as quatro alianças qeu trazia em seus dedos, representações de um amor, deposita-a a seus pés, recolhe o balde d'água e entrona-o em si, da cabeça aos pés. Sacode-se como uma cadela e saí avante, sem olhar para trás.