agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

sábado, março 17, 2012

O artista e a cidade

Foto de Thiago Franco- Ação/invasão obscênica no Dia Internacional da Mulher

"Não temos nenhuma dificuldade em admitir que a cidade, no sentido mais amplo do termo, possa ser considerada um bem de consumo, ou melhor, até mesmo um imenso e global sistema de informações destinado a determinar o máximo consumo de informações. Mas a única possibilidade de conservar ou restituir ao indivíduo uma certa liberdade de escolha e de decisão e, portanto, de liberdade e disponibilidade para engajamentos decisivos, inclusive no campo político, é colocá-lo em condições de não consumir as coisas que gostariam de fazêlo consumir ou de consumi-las de maneira diferente da que gostariam que as consumisse, de consumi-las fora daquele tipo de consumo imediato, indiscriminado e total que é prescrito, como sistema de poder, pela sociedade de consumo.

Trata-se, em suma, de conservar ou restituir ao indivíduo a capacidade de interpretar e utilizar o ambiente urbano de maneira diferente das prescrições implícitas no projeto de quem o determinou; enfim, de dar-lhe a possibilidade de não assimilar, mas de reagir ativamente ao ambiente". (ARGAN, 1998, p. 219)

"O artista – integrado ou apocalíptico que seja – não pode deixar de existir no contexto social, na cidade; não pode deixar de viver suas tensões internas. A economia do consumo, a tecnologia industrial, os grandes antagonismos políticos que delas derivam, a disfunção do organismo social, a crise da cidade são realidades que não se pode ignorar e com relação às quais não se pode deixar de tomar – mesmo involuntariamente – uma posição". (ARGAN, 1998, p. 221)

ARGAN, G. C. História da Arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.



Santa Maria da Mala - Ação obscena no dia 08 de Março

Foto de Thiago Franco


05 de Março de 2012.

Joca Amore,

ainda estou nas ONDAS do Experimenta-Experimenta da Gruta de ontem....momentos de plenitude, sustos e acontecimentos....corpos nômades obscênicos fluindo num mar de cores, formas e sons...Muita vida, muita presença, intensidades até agora aqui momento instante ai, que delícia!!!! Olha a delícia, sinta as delícias que sinto também daqui.

Bom que aceitou participar comigo da ação SANTA MARIA DA MALA. Voltou a imagem das bonequinhas desmembradas no teu trabalho do BABY-DOLLS e acho ótimo tudo isso se re-linkar noutra parceria e criação. Então provocaremos a cidade com malas e pedaços de corpos femininos, um pouco em memória ao crime de mais de 80 anos com a Maria Féa, e também porque infelizmente continuam esses crimes bárbaros contra as mulheres. E a ação no dia 08 de Março, junto à MARCHA MUNDIAL DE MULHERES, vai ser mais uma colaboração nossa. E também vamos jogar com o espaço, a cidade, as placas e corpos proibidos dos outros obscênicos.

Então, só pra lembrar: duas malas, roupas brancas, pedaços de manequim e pensei também em bonecas de plástico, panos branco e preto e jornal do dia.

Faltou mais alguma coisa?
Pensei da gente fazer a ação com muita calma, dando tempo de se formar uma imagem para os passantes.....

Bjos,
Clóvis.


Desenhos de Leandro Acácio após exposição de ideias


07 de Março de 2012-03-17.

oi clovito,

que bom!

muitas ondas ainda por aqui....

obrigada pelo convite, um prazer. as imagens estão em minha cabeça desde a última quinta. hoje separei um jornal: em 3 anos, 454mil mulheres são agredidas

levarei nosso materiais. hoje já saio da gruta com a sua mala achada para caminhar com ela amanhã.

bora lá, pra rua.

um beijo,

Joyce.


13 de Março – depois da ação realizada:

Joyce querida,

fiquei avaliando a nossa ação do dia 08 de Março. Nossa, foram intensidades muito diferentes, né? As coisas foram "esquentando" aos poucos e chegou num acúmulo poderoso e perigoso com a gente (do OBSCENA) correndo feito loucos na frente da Marcha e se jogando no chão e abrindo as malas revelando pedaços de corpos femininos.

Foi uma manifestação cênico-performática muito potente, com uma dimensão plástica também, a tensão dos corpos, o congelar das imagens dando tempo para as pessoas criarem suas leituras. Tudo muito bom...

Legal termos "jogado" com o Leandro (sintomático porque ele inclusive delirou com nossas ideias e desenhou alguns esboços da ação), com as performers ( A Leticia Castilho com a burca, a Lica com a classificação zoológica da mulher; a Luciana Cesário caminhando com aquela costela nas costas), com o espaço, entre nós mesmos. Aconteceram COMPOSIÇÕES OBSCENAS, travestidas, provocativas, invadimos aos poucos a cidade, criamos interrupções, afrontamos lugares como lojas e pontos de ônibus, percebemos os lugares de PASSAGEM e os espaços de CONCENTRAÇÃO. Houve escuta, cuidado e jogo.

Saí enlouquecido da ação, fiquei vigoroso, emocionado, sou também mulher. Tenho observado que a cidade tem se tornado espaço de diferentes manifestações. E mesmo na arte, não se trata de ser moldura ou palco, em nosso trabalho de intervenção, é TERRITÓRIO de conflitos, encontros, dimensão relacional mesmo. Programas de ações que se desprogramam, se de-compõem e provocam acontecimentos.

Em duos, trios e num momento mais coletivizado, atuamos e reconfiguramos ações, criando um mosaico de paisagens que habitaram a cidade naquela tarde do dia 08 de Março. Pura rede de afecções. Eu tremia muito...

E o que você achou do trabalho?

bjos,

Clóvis.

domingo, março 11, 2012

Cachorros não sabem blefar. Humanos sabem!

Foto de Marco Aurélio Prates

Cachorros não sabem blefar. Humanos sabem!

Para Saulo Salomão, um ator obsceno.


Assumo: esse texto é um blefe. Eu blefo, tu blefas, eles blefam e todos nós blefamos. Somos humanos. Cachorros não sabem blefar. Que pena! Reconheci minha humana condição de blefador após assistir ao espetáculo da Cia Cinco Cabeças agora no Verão Arte Contemporânea em Belo Horizonte. Saí do teatro repleto de indagações fervilhando em minha cabeça. Eu tenho uma ou “cinco cabeças”?

A sinopse é o seguinte: “Caio sempre olha para seu relógio que insiste em marcar o mesmo horário: 9 e 15. O problema não são as pilhas. Provavelmente está quebrado. Ou então cansou-se. O que seria lastimável para um relógio. Adamastor odeia o nome Caio. Cristina não quer morrer virgem e odeia Caio, seu namorado. Caio, que não é o namorado de Cristina, apresenta-se para as pessoas com o nome de Adamastor, pois sabe que assim são capazes de suportá-lo. Adamastor acredita que tartarugas são perigosíssimas. Certa vez perdeu toda sua fortuna para um jabuti. Verônica nunca sabe se está ou se não está nua. Já perdeu vários empregos por causa disso. Alguns porque estava nua. Outros porque estava vestida. Berenice procura seu cachorro. Ele está sozinho em casa e não sabe abrir pacotes de ração e nem a geladeira. E um detalhe importante: ele não late. De jeito nenhum. Talvez não exista. Não existem cães que não saibam latir. E tartarugas que não saibam blefar. Por isso são excelentes parceiras de pôquer. Já os cachorros não. Cachorros não sabem blefar”. Deu prá entender? Tomara que não...

A cortina se abre e não sei se estou diante do palco ou de uma tela. As primeiras imagens são puro cinema e tenho meu olhar capturado. E todo um traço cinematográfico perpassa a encenação, se apresentando no desenho do espaço, na atuação dos intérpretes, nos movimentos da luz, na dramaturgia “cortada” etc. Há espera, vazio, silêncio e incomunicabilidade, elementos a tensionar tempo, espaço e narrativa.

Um corte: Engraçado, estamos sempre esperando: Godot, God. Good and Happy Days (Beckett) e o toque de um telefone nos trazendo alguma notícia e nos distraindo do absurdo de existir. Estou nu ou vestido agora?

O relógio se cansou e nos transformamos em reféns de um tempo sem minutos e horas. Mas nessa prisão, às vezes risível e angustiante, é que praticamos nosso esporte preferido: blefar. Blefamos, vivemos e aprendemos. Blefar é enganar, confundir e dissimular. E não há maior dissimulação do que a linguagem e a comunicação. A gente quase nunca consegue dizer o que queria, de fato, dizer. Lançamos as palavras, acreditamos na eficiência delas, mas quando essas chegam aos outros, aí já é outra história. Daí tantos desentendimentos e haja blefe! Pedem-nos lógica naquilo que dizemos, pobres de nós! E até aquilo que nos domesticamos a dizer, dependendo de como o subvertemos em algumas ocasiões, pode instaurar o caos, o non-sense e a confusão.

O espetáculo me trouxe isso: blefamos porque somos animais (mas não cachorros) constituídos pela linguagem. Para isso utilizamos códigos, símbolos, palavras, expressões e por aí vai... Cachorros não falam, não mentem e não odeiam Caio porque esse nome pode lhes remeter experiências negativas. Só nós podemos odiar ou amar Caio, Adamastor, Cristina, Berenice, Verônica e qualquer outro nome. Cachorros quando latem podemos ter certeza de que tem algo acontecendo. Já as coisas nos acontecem, a gente fala, inventa, tenta dar nome e sentido, mas nunca chegamos no É das coisas. (Salve Clarice Lispector!). A linguagem blefa. O sentido escapa e como em Ionesco, surge o estranhamento na linguagem cotidiana. O espetáculo brinca com essa Babel que insiste, re-insiste, resiste às classificações e tentativas de ordem e entendimento.

O trabalho conta com a primorosa direção de Byron O’Neill e um conjunto de atores-colaboradores afinados com a proposta desenvolvida. Cachorros não sabem blefar. Que pena! Humanos sabem. Que maravilha! Até porque não há blefe mais interessante do que criar ficções e histórias, mentiras mesmo. Obras artísticas, como o espetáculo da Cia 5 Cabeças, que forçam o pensamento a estrangular as lógicas dos discursos os quais nos habituamos. Do eu hábito ao eu HABITO há uma enorme distância. E esse espetáculo numa excelente e contemporânea linhagem do Teatro do Absurdo, nos coloca essa questão.

Enfim: Cachorros não sabem fazer teatro. Mas os criadores da Cia 5 Cabeças sabem. E fazem. Eles nos presenteiam com um trabalho que anuncia a promessa de mais um jovem grupo teatral a enriquecer a cena mineira.

Clóvis Domingos.

Belo Horizonte, 14 de Fevereiro de 2012.

Corpoalíngua Obscênico e Ondulante

Alice Floripes


03 de Março de 2012. Casa de Passagem. 23 horas e alguma coisa...Perdi a noção de tempo. Primeiro dia de Experimenta na Gruta. "Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim". Giros. Corpoalíngua obscênico porque obscenidade é estar na presença e beijar o Acaso, o Instante, o Momento.

Foi (é) como uma onda que vem e passa. Águas chamam águas que desaguam em corpos que fluem num mar de Acontecimentos. Escrevo encontros, fluxos, ondulamos ondulantes saltitantes desejantes a vida com seus ruídos... Projeções, sonoridades, vozes, corpos nômades, Clarissa chega e me leva para outro canto, são portas que se abrem. Clarissa serpenteia e voa.

Leio: " Seus rostos esvoaçam como borboletas(...) Tudo ondula, tudo dança. Nada se fixa. Tudo é rapidez e triunfo." (AS ONDAS. VIRGINIA WOOLF).

Volta ROL, o eterno retorno? O que acontece? Entontece? Piracema. Juntos subimos a correnteza. Cardume alíngua. Juntos, mas singulares. Obscenos porque plurais, separados, serpenteando sonoridades e disformidades corporais. Serpenteia, Agapito! Ágon apita!!! Apita! Chama ! Corpos andarilhos ondulam e experenciam tempo, espaço e FORÇAS... Tudo é artevidasemprejunatasagorasempreinstantejá!

Ou estamos de vermelho e preto ou de branco como agora? Somos feiticeiros sim. Faz-se comida para o alimento desse agrupamento obsceno e nômade. Corpos são casas de passagem, territórios de atravessamentos, obras com brechas e convites à inundações...

Ondulo, ondulo, ondulamos...

sexta-feira, março 09, 2012

quinta-feira, março 08, 2012

8 de março!



8 de março, DIA INTERNACIONAL DA MULHER, é um dia de luta!
O ato público estadual - que conta com a participação de várias entidades e coletivos de artes, terá início na Praça da Estação e seguirá, com passeata e diversas ações performáticas e interventivas pelas ruas do centro de BH, até a Praça Sete, onde haverá nova concentração.







Participaram da organização do 08 de março, em Minas Gerais: Blogueiras Feministas, ALEM, AMB, ANEL, Brigadas Populares, Associação Cultural Odum Orixá, Obscena Agrupamento, Coletivo Ana Montenegro, Coletivo Marias de Minas/Lavras, Coletivo Nada Frágil, Coletivo Paisagens Poéticas, CAAP/UFMG, CACE/UFMG, CACS/UFMG, COMDIM, Comitê Popular dos Atingidos pela Copa, Consulta Popular, CRESS/MG, Conselho Regional de Psicologia-MG, CSP-Conlutas, CUT-MG, Instituto Albam, Instituto Helena Greco de Direitos Humanos e Cidadania, Levante Popular da Juventude, MAB, Marcha Mundial das Mulheres, Movimento Mulheres em Luta, Movimento de Mulheres Olga Benário, MPM, MST, PCB, PCR, PSOL, PSTU, PT-BH, Primavera nos Dentes, Quilombo Raça e Classe, Rede Feminista de Saúde, Sind-REDE/BH, Sitraemg, UBM, UNEGRO, Via Campesina.






quarta-feira, março 07, 2012

exercícios para o teatro que virá

foto: alice floripes


Agora, estamos a salvo. Já nos podemos voltar a endireitar. Já podemos estender os braços no meio desta vegetação tão alta, no meio deste bosque tão grande.
Não ouça nada.
– Estás-te a afastar, tu e as tuas frases. Agora, puxas-me a saia, olhas para trás e constróis mais frases. 
Vou colocar um farol aqui. Agora, vou embalar a minha taça castanha de um lado para o outro para que os meus navios possam cavalgar as ondas. Alguns afundar-se-ão. Outros despedaçar-se-ão contra os rochedos.
Mas há um que navega sozinho. É o que é verdadeiramente meu.
...
Estou coberta por carne quente.
Aperto o pijama e deito-me por baixo deste fino lençol, flutuando numa luz pálida. 
O começo de um cântico. rodas, cães, homens a gritar, sinos de igreja. o começo de um um cântico.
- No momento em que dobro o vestido, ponho de parte o desejo.
Contudo, sei que vou esticar os pés para que possam tocar na barra da cama; quando a tocar, ficarei mais segura por sentir qualquer coisa de sólido.
Agora, já não me posso afundar, agora, já não posso cair através do lençol. Agora, estendo o corpo neste frágil colchão e fico suspensa. Estou por cima da terra. Já não estou de pé, já não me podem derrubar nem estragar.
É melhor sair destas águas. Mas elas amontoam-se à minha volta, arrastam-se por entre os seus grandes ombros; fazem-me virar; fazem-me tombar; fazem-me estender por entre estas luzes esguias, estas ondas enormes, estes caminhos sem fim.


(apropriando-me de as ondas, de virginia woolf: cortes, colagens, transformações)

segunda-feira, março 05, 2012

"Disse:

__ é tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.


e Polo:

__ o inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. existem duas maneiras de não sofrer. a primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. a segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço."


as cidades invisíveis

ítalo calvino

sábado, março 03, 2012

A performance morreu? antes ela do que eu

Texto originalmente publicado em outubro de 2009, em www.desautoria.blogspot.com


a performance se tornou um modo do artista falar dele mesmo


(Josette Féral)


Nos últimos meses, Belo Horizonte foi cenário de mostras e festivais centrados na apresentação (e discussão) de performances, como a Mostra Internacional Horizontes Urbanos, a MIP 2 – Manifestação Internacional de Performance e o Festival de Performance de BH. A coincidência deste momento com a presença, no Brasil, da professora canadense Josette Féral, teórica especializada no estudo da cena contemporânea e que tem trabalhado com o conceito de teatro performativo, levou-me a levantar a discussão em torno de algumas questões tocadas por ela na série de cursos – Teoria e Prática do Teatro: além dos limites – que ministrou em agosto último no Programa de Pós-Graduação em Teatro da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Para Féral, falar de performance, hoje, é fazer a “autópsia” dessa arte. Segundo ela, a performance deixou de ser uma manifestação transgressora – porque uma forma esvaziada de seu caráter ideológico – para se tornar um gênero cênico com características formais específicas a ser manipuladas em favor da expressão do artista. Evidentemente, o que está sendo colocado em questão não é a potência expressiva da performance (não se pretende negar ao artista o “direito” de ter em sua arte um meio de expressão), mas o fato de que a performance, que nascera justamente de um forte questionamento do valor da representação e da arte, assuma aspectos daquilo que, inicialmente, ela mesma colocara em crise. Ou seja, ao que chamamos de performance hoje?

Partindo dos estudos de Schechner (Performance Studies) e Huyssen para conceituar performance e tentar apontar quais seriam os seus elementos originais, Féral vai afirmar que estes, precisamente, não estão mais presentes nas manifestações performáticas da contemporaneidade. Inclusive o fato de existir festivais ou mostras nos quais se apresentam performances programadas e, muitas vezes, repetidas e repetíveis, já é, para ela, uma demonstração de sua tese, uma vez que a performance é caracterizada, justamente, por seu caráter de acontecimento.


De fato, no cerne da noção de performance reside uma segunda consideração, a de que as obras performativas não são verdadeiras, nem falsas. Elas simplesmente sobrevêm. “As play acts, performative are not ‘true’ or ‘false’, ‘right’ or ‘wrong’, they happen”, disse Schechner (FÉRAL, 2008: 203).


Esse caráter “eventual” da performance parece implicar em várias outras questões. Como conseqüência imediata, podemos dizer que há uma recusa de todo elemento ensaiado, de tudo o que possa ser realizado novamente. Se nos remetermos às experiências mais extremistas de performance, ocorridas no anos 70 e 80, vamos perceber, em diversas delas, ações que não podem ser refeitas, como as mutilações presentes nas bodies arts. Decorrente desse traço, ocorre que a performance parece implicar em uma noção de risco, tanto para o performer quanto para o espectador. Nesse sentido, podemos dizer que ela se traduz, fundamentalmente, como uma experiência, pois o espectador “longe de buscar um sentido para a imagem, deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa” (FÉRAL, idem). Além disso, como a performance, em essência, questiona, como já foi dito acima, o valor de representação da obra de arte (nesse sentido, há, nela, uma recusa da mimesis) e o seu valor como arte, decorre que, resultante desse primeiro traço, há, na performance, pouco interesse em se pensar, historicamente, como gênero. Logo, há pouco interesse no registro, em guardar sua própria memória. A performance afirma, na ausência do traço, do registro, a ausência da obra, daquilo que possa ser comercializado.
Para Féral, a performance perdeu, hodiernamente, seu valor de experimentação: ela tem uma forma acabada, é repetida, filmada e vendida. Para ela, é característica deste movimento da performance o fato dela, hoje, se preocupar bem menos com o processo (este é escondido do público) e mais com a produção de uma obra acabada: o tempo já não é colocado em questão. Também o corpo – que tinha papel preponderante no início – vai se tornando um elemento como qualquer outro. A imagem vai tomando seu lugar. E, ironicamente, a performance que tinha questionado o uso dos espaços convencionais, a eles retorna: retorna ao palco e à galeria.
Essa foi, pelo menos, uma parte da configuração das mostras e festivais ocorridos em Belo Horizonte nos últimos meses. Performances – muitas vezes de forma contrária ao seu projeto original – tinham seus tempos, horários e locais de realização determinados pela organização dos eventos, em consonância muito mais com o interesse de seus patrocinadores e apoiadores. Mais do que garantir o caráter de risco da performance – potencializando sua interferência no cotidiano do cidadão e sua ação política – pareceu interessar aos organizadores, de uma maneira geral, garantir o acesso de um público especializado que pudesse fornecer ao evento sua chancela de cultural. Ora, se uma performance se vê restrita a ocupar um espaço determinado não por suas próprias necessidades (de acordo com seu projeto poético), mas por contingências do evento do qual faz parte (o mesmo ocorrendo com seu tempo de apresentação – comprimido em função das necessidades da mostra ou festival de criar um amplo painel ou uma amostragem – e com seu horário), ela se encontra “desinvestida” de todos os elementos que a caracterizam como performance – isto é, como uma manifestação de caráter experimental e eventual – e que a conectam às suas possibilidades políticas. Nesse sentido, o pensamento que rege eventos dessa natureza parecem mais dimensionar a performance no mercado da obra de arte, a qual pode ser “comprada” para ser “exposta” ao público, do que em sua vanguarda.
Pensando mais especificamente no teatro do que na performance, Lehmann vai afirmar que, em relação ao teatro pós-dramático (ou performativo, na concepção de Féral), a possibilidade de ação política está relacionada com o seu modo de representação, isto é, na medida em que ele “impõe seu caráter de acontecimento”, em que ele “manifesta a alma do produto morto, o trabalho artístico vivo, para o qual tudo permanece imprevisível e está para ser inventado”. Ou seja, “o teatro é virtualmente político segundo a concepção de sua prática” (LEHMANN, 2007: 414).
Sabemos que a performatividade não é uma “propriedade” dos objetos, da ação, mas uma dinâmica de relação que investe esses objetos ou essa ação. Ocorre então que, se é necessário, para o teatro, hoje, dar um salto em direção à performatividade, também parece ser necessário, ironicamente, que a performance volte a saltar no escuro.



Referências Bibliográficas

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. IN: Revista Sala Preta. São Paulo (ECA/USP), 2008.
LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. New York & London: Routledge, 2006.
____________________________. The End of Humanism: writings on performance. New York: Performing Arts Journal Publications, 1982.