Estado OBSCÊNICO dia 18 de setembro de 2008 (9910-181-91-10-1).
Hoje, uma quinta-feira chuvosa e fria, após o trabalho chego em casa. Um chá para aliviar um estômago cansado. Um convite para ver um documentário: ‘Meninas’, de Sandra Werneck. Quatro meninas do morro dos macacos na rocinha. De 13 a 15 todas estão grávidas. Os pais: um traficante; um estudante; um ex-avião, pai de dois por sinal. Escola? Lazer? Trabalho? Nada. As meninas são responsáveis pela casa e pelos irmãos mais novos. Os rapazes ou estão no crime ou estão em subempregos. Não há perspectiva. É o ‘mercado da buceta’ imperando seu ‘modo operante’ – fabricação de mão de obra barata, alienada e que permanece em faixa etária ideal para a manutenção do mercado. Rapazes morrem cedo, as meninas produzem filhos anualmente e muitas vezes de pais diferentes. A mais nova das entrevistadas é viúva aos trezes anos. Não que nesta idade minhas avós já não estivessem de mãos entregues a rapazes para se casarem em breve e minha bisavó com esta mesma idade já estava a um ano de se casar com um primo de segundo grau com 23 anos. Mas, o que se passa é mais delicado. São meninas que desejam ter filhos para serem reconhecidas como seres humanos. Elas desejam ser mães para terem uma cama para si e o filho, para terem comida a mais, para terem o título de mãe. Elas não têm condições de escolher uma profissão, logo querem ser mães. Esta realidade existe a alguns quarteirões da minha casa. Passo de ônibus e vejo meninas a andar com crianças pelas mãos, no colo, no ventre. Não brincadeira mais, elas não têm o direito de sonhar e ser alguém, alguém que realiza algo mais que cuidar e procriar. Imagem estagnada da mulher. Da função e do exercício pertinente a entidade social feminina. Daquilo que o sistema reserva a mulher. Enfim, a mediocrização da mulher ao longo de séculos. E agora deparamo-nos que esta realidade.
Sinto-me revirada por dentro. Três partos são filmados. Um uma violência. Sinceramente, é uma violência. Três cesáreas e um parto normal. Meu ventre chega a doer. Doer. Reviro-me no sofá. É triste vê-las sair do hospital cansadas, felizes e sem a menor idéia do que as espera. Os pais tensos, sem dinheiro. Casas apertadas. As irmãs mais novas seguem o mesmo caminho e treinam sem cessar ao longo do dia: imitam os cuidos com as bonecas. O gesto se prolifera. A função se apresenta e se representa na brincadeira. A imagem se estagna, ao longo de anos ela é repetida às meninas mais novas e por estas assimiladas. O que fazer? Quando percebo no procedimento mesmo da ‘brincadeira de casinha’ os corpos são dóceis aos objetos, nos os acatamos com nossos gestos. Claro, somos mulheres conscientes e em exercício de nossa feminilidade e mesmo assim somos dóceis.
Ozana já nos falara dessa realidade quando nos encontramos no início do ano. E hoje sinto o mesmo engasgo, ou hoje sinto mais? Sim. Eu sinto mais. Isto é mais real. Percebo mais claramente o que é programado em mim e tendo lidar com isso todos os dias. Este é meu exercício performático: escapar do ‘mercado da buceta’. Reconhecendo diariamente os meus gestos repetitivos, minhas ações programadas, meus momentos de ausência, de displicência diante de mim e da minha feminilidade. Puxo o períneo respiro fundo e sigo em frente. Sempre adiante.
.SARAVÁ.
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