Advertência / “Há de se ver tensa” a relação entre Performance e
Universidade
Clóvis Domingos
(texto criado, experimentado, fragmentado e partilhado em 22/05/2012
para a Mesa Redonda: “Performance, Universidade e Formação” na Ocupação
PERFORMATITE / VIII Semana de Artes da UFOP).
A Universidade pode ser pensada
como um grande corpo. Um corpo formado por muitos outros corpos: corpo docente,
corpo discente, corpo displicente, corpo indecente etc.
Não sei se a prática da arte da
Performance nos cursos de Artes Cênicas tenha se transformado numa performatite
(doença que não pega em qualquer um. Há que se ter certa predisposição). Mas
que ela causa problemas, confusões e tensões, isso eu acredito que aconteça
sim.
Sabemos que o teatro se deixou
infectar e contaminar pelas práticas performáticas artísticas. Hoje no teatro
contemporâneo falamos da presença de um teatro performativo (Josette Féral) ou
teatro pós-dramático (Lehmann). O fato é que a teatralidade, historicamente,
está em queda há mais de 150 anos e a performatividade vem assolando uma série
de espetáculos e experiências atuais, borrando os conceitos e fronteiras entre
as linguagens.
Então, hoje, num curso de Artes
Cênicas, é inevitável não se coexistir práticas de encenação dramática e
experimentações e pesquisas performáticas. Professores e alunos inquietos
trazem para a sala de aula propostas e indagações artísticas que problematizam
e desestabilizam conceitos até então confortáveis como: cena, ator,
treinamento, representação, método, espetáculo, teatralidade etc. Detecta-se aí
o aparecimento de um ponto de tensão, que exige pesquisa, diálogo, disposição
(de ambas as partes) para se abandonar referências tradicionais e teóricas; e se
poder analisar o fenômeno, aquilo que acontece, aparece, revela e provoca. Como
diz Rilke em “Cartas a um jovem poeta”: amar mais as perguntas do que as
respostas.
O MINISTÉRIO DA SAÚDE ADVERTE: NÃO EXPLICAR É PREJUDICIAL À SAÚDE.
A prática da arte da Performance
produz ações e efeitos contraditórios:
aguça a curiosidade, seduz artistas pela transgressão dos gêneros artísticos,
atrai a atenção de todos e ao mesmo tempo provoca desconforto, mal estar e
repulsa. Olha aí mais um ponto de tensão. Há um estímulo à prática (deve ser
porque ela é contemporânea e todos queremos ser a vanguarda) e depois, em
alguns casos, há muita reclamação e dor de cabeça. Eu já presenciei esse fato
algumas vezes e em diferentes lugares.
A Performance pode inclusive
adoecer àqueles que são adeptos de um teatro muito robusto, muito saudável,
gordo. Forte, alimentado e praticado por séculos. Muito equilibrado
psiquicamente. Organizado demais... Nesse caso, a Performance se apresentaria
como a ameaça de uma doença crônica que traz mau cheiro, náusea, vertigem e
pede um tratamento intensivo de sanidade, clareza, objetividade e um bom
acabamento.
A nós artistas-pesquisadores
dessa inflamação, dessa Performatite, essa doença se configura como nossa saúde
plena. Nossos coletivos desejam isso: uma arte sempre de rupturas, escapando de
conceitos fixos e duros; de repetição. Com
uma dimensão anárquica que é OBSCENA, NÔMADE E A-LÍNGUA, LÍQUIDA NAS AÇÕES, E
QUANDO É COISA ENTÃO SE TRANSFORMA NUMA INCRÍVEL LARANJA PODRE PERFORMÁTICA.
Aqui brinco com os nomes dos coletivos presentes nesse evento. Mas,
os sanitaristas da arte de plantão me avisam:
O MINISTÉRIO DA SAÚDE ADVERTE: UMA LARANJA PODRE CONTAMINA UM CESTO
INTEIRO.
Mas os coletivos artísticos (que
aqui se encontraram e trocaram práticas) devem ficar atentos para não se
curarem dessa performatite tão necessária. Afirmo isso porque corremos o perigo
de sabermos demais, termos certezas e fórmulas prontas, enfim, não estarmos
mais contaminados pela dúvida, pelo risco, pelo processo, pelo não-saber,
pelo fazer e experimentar. Sem muito juízo de valor, o que pode possibilitar o surgimento de novas formas de criar e viver.
Cursos de Artes Cênicas também
correm o risco de propor práticas performáticas, mas não permitirem que o vírus
da performatite invada seus corpos, cabeças, espaços e ideias. Podem
institucionalizar a arte performática, aprisioná-la, estabelecerem critérios
muito empobrecedores etc. E então o que se experimentará será apenas uma visão
histórica dessa prática, seus textos, seus cânones, seus mestres e referências...tudo
muito organizado, asséptico, contornado, nomeado e ... bem sob controle.
O fato é que a Performance é um
boi com sete chifres, é também um travesti e faz feitiçaria assombrando os mais
desavisados. É uma intrusa em festa muito calma, come feito mendigo, incomoda e
pode até ser alvo de violência. Claro, a Performance também é um ato violento
em suas variadas manifestações. Violenta os sentidos, as tradições, as regras e
pode fazer isso com extrema delicadeza ou com então com escárnio sobre algumas
situações. Há gosto para tudo.
Como não se lembrar de uma ação
performática tão violenta (e poderosa) como a Performance BIXO (realizada por Romênia Moura e Daniela Moreno no restaurante
universitário da Ufop em 2007), que num ato inconfidente, denunciava o
autoritarismo das repúblicas federais da Universidade e seus moradores com seus
cruéis rituais de iniciação e regras absurdas com os novatos que “batalhavam
vaga” nessas casas estudantis?
Nós, alunos dessa época, não suportávamos mais
o triste espetáculo de humilhações e aberrações que aconteciam nos
restaurantes. “Bater bandeja” – um pobre e automatizado ritual de corpos
domesticados a produzirem barulho e não permitirem um momento de calma na hora
das refeições. Tudo isso sustentado pelo peso de uma tradição burra, e o pior, contando
com a irresponsável cumplicidade da Universidade, que até então não tomava
nenhuma medida.
Mas BIXO gerou agressões verbais,
comida espalhada pelo chão, ameaças de violência corporal, o teatro de horrores
agora na cara de todo mundo e foram necessárias reuniões institucionais de
urgência, proibições, presença de fiscais nos restaurantes; ações incisivas e
decisivas, um momento de muito medo e tensão, mas que anunciava a chegada (tão
esperada e batalhada) de NOVOS TEMPOS.
Destaco então a dimensão política
desse ato performático, que foi além de uma proposta estética, foi um ato de
coragem, posicionamento e provocação direta a um sistema opressor.
Eu, em quatro anos de vivência do
meu curso aqui, nunca deixei cair um talher no chão. Que medo de baterem
bandeja para mim! Sou um exemplo. Puro controle. Controlado.
O MINISTÉRIO DA SAÚDE SE DIVERTE: EVITE CONFRONTAÇÕES.
DISCUTIR TRAZ DANOS AO CORAÇÃO.
Tentando terminar: para mim a
potência de uma ação artística performática está em sua força e coragem de não
deixar se silenciar as infinitas manifestações da vida. Então não são mais arte
e vida separadas, tudo é uma só coisa, um entrelaçamento poético, que
transforma a quem faz e a quem testemunha e participa.
E devemos, todos nós, ficarmos
alertas, para não cairmos na armadilha de apenas discutir e teorizar o que seja
a dita Performance. O academicismo, apenas enquanto teoria, pode ser nocivo
nesse caso. A prática performática se articula entre ação e teoria sim.
Fazer-Pensar caminham juntos. É que nossa razão e inteligência desejam
vorazmente conceitos e referências, e muitas vezes não nos arriscamos na
prática da experimentação. Que mesa redonda (e quadrada) mais prestigiada hoje!
Quanta saúde, quanta vacina, quanta gente jovem, que pele boa!!!
Onde estão os corpos em estado
febril e delírio poético?
Sentados? Passivos? Alienados?
Mas como? Onde estão os corpos
que dançam feito Deuses? Eu só acredito neles... Corpos em trabalho, agonia,
prazer e alegria!
Isso é uma advertência?
Falta dança, jogo, corpo e
ousadia?
Então é preciso adoecer para se ter saúde na
criação. Há de ser tensa nossa relação com a arte. Senão nesse “crepúsculo dos
deuses”, apenas reverenciaremos os que já criaram a GRANDE OBRA e acabaremos os
repetindo...
MAS NÓS PODEMOS SER DEUSES!!!
Um corpo infectado de ideias,
frágil, tenso, mas vivo e vivificante. Um deus-performer, deformer, deformado,
encarnado, multiforme e sem formas... Mas que dança seu “maracatu atômico”!
O resultado do exame deu
positivo.
No mundo das artes, da
Universidade, da cidade e do cotidiano, fica uma pergunta:
Por onde andarão os corpos reagentes?
---- As imagens são de Clarissa Alcantara.
3 comentários:
muito que bem !
correto : deus é criador , não pode ser criatura !
Crer não é doença , mas se for deve ser no campo da ftalmologia ! beijo , J.
Que doença da ordem da saúde que tantos outros já disseram.
Bom demais perceber a vida que a doença do texto trata, essa que nos infecta e nos move: performance.
Mais que reativos, há corpos afirmativos de performance nas Universidades, no cotidiano,que desnudam a doença da ordem institucionalizada!Performance!
muito bom!!
Agora, sou portador desse texto, infectado por ele.
Bravo!
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