agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

sexta-feira, agosto 24, 2012

GUEST POST: RITUALIZAR AÇÕES COTIDIANAS A PARTIR DE OBJETOS (OU COM)


Pode-se dizer que a aplicação prática dada ontem pelo Obscena criou um lugar propício para a instauração do “comportamento restaurado”, diante da  repetição de ações cotidianas em espaços que, socialmente, não são “próprios” daqueles atos. O “comportamento restaurado”, segundo Richard Schechner, é o processo chave de todo tipo de performance, no dia-a-dia, nas curas xamânicas, nas brincadeiras e nas artes. O “ser” performance é um conceito que se refere a eventos definitivos e delimitados, marcados por contexto, convenção, uso e tradição. Tratar o objeto, ou obra como performance significa investigar o que esta coisa faz, como interage com outros objetos e seres, e como se relaciona. Na vida cotidiana, pode-se dizer que ritualizar é refazer minuciosamente, ou seja, exibir de maneira intencional as possibilidades, podendo chegar ao extremo, sublinhando uma ação para aqueles que a assistem.
Nina escolheu um lugar: a praça. Sentou-se no banco embaixo de uma árvore, colocou sua toalha e pasta de dente ao lado e pôs-se a agir, escovando os dentes em meio às pessoas que passavam por ela. Apesar de a ação ser em um espaço público, Nina não pareceu estabelecer relação direta com os transeuntes, seu foco era outro: deslocar uma ação íntima, privada para o lócus compartilhado, deixando parte de sua intimidade diária à mostra. O ato continuum era o que parecia almejar. Embora a ação fosse a mesma, os eventos sucessivos eram diferentes em tempo e ritmo, por que eram marcados de forma diferenciada. Em outras palavras, a particularidade de cada gesto de Nina estava não apenas na materialidade testada, mas na atividade da perfomer e em sua interatividade com os objetos deslocados:

Comportamentos restaurados são comportamentos vivos tratados como um cineasta trata um pedaço de filme. “Esses pedaços de comportamentos podem ser rearranjados ou reconstruídos: eles são independentes do sistema causal (pessoal, social, politico, tecnológico), que os levou a existir.” (SCHECHNER, R. O que é performance?. In O Percevejo, ano 11, 2003, n. 12, p. 25 a 50)

 A deslocação espacial causava o estranhamento, pois a higienização bucal em vias públicas geravam dados ao olhar passante. Obviamente, estranho não pareceria às outras pessoas que moram na praça, que estão nela e fazem dela o seu cotidiano, fazendo suas necessidades, tendo suas afeições, bebendo e comendo naquele espaço diariamente. Para eles as ações da Nina e da Joice eram banais, se misturavam em meio aos andarilhos[1].  Joice lavava os pés, ambas buscavam o lugar da higienização pessoal. Isto me fez pensar que estar limpo parece ser o grande ritual diário dos seres humanos, não só por si, mas pelo convívio com os outros. Estamos na era da higienização excessiva, a Imagem pede, determina. Por isto talvez, que os “ditos” não limpos estão sendo levados para fora da cidade, para longe, pois eles não se enquadram nos padrões diários da boa limpeza como bom costume, dos cheiros excessivos dos perfumes, porque, talvez, eles se sintam à vontade com o próprio cheiro, enquanto nós não nos damos a possibilidade de sentir, de cheirar, de suar, ou seja, negamos o nosso corpo cotidianamente.
Já dentro do Centro Cultural da UFMG havia certo conforto e um risco menor, os espaços institucionais permitiam uma abertura às ações, não me causava estranhamento nem aos outros olhares. Como a proposta podia partir do interno-externo, parecia que o trabalho dos performers caminhava para uma experiência íntima, independente do outro. Vi Clarissa fazendo uma espécie de altar com os seus cigarros, todos ao redor. Um santuário de fumaça. O sentido estético era bem forte em seu trabalho, havia uma clara composição dos materiais. Os cigarros acendiam, um a um. Clarissa desejava o fogo, queria queimar, queimou os cigarros, a caixa, a carteira. Não parou. Parecia que levava ao extremo o seu prazer de acender, de fumar. Os cigarros entronizados por ela verteram, o vento derrubou o altar. Uma pena, o vento poderia ter esperado os cigarros ardendo mais um pouco, pelo menos o tempo de eu tirar as fotos. Apesar de sua forte dimensão estética, vi que sua consciência não estava em fazer arte para o outro olhar, mas para si, em uma disposição de materiais que poderia mover, que mandaria. Este é o nosso poder sobre o objeto, podemos fazer o que quisermos com ele. O objeto está ao nosso serviço, ele se entrega na lógica do fluxo que damos. O cigarro se desnudou em suas mãos e em sua boca. A performer estampava o seu desejo, manuseava o poder que tinha sobre o ato de fumar.
Clovis trocava os sapatos em tempos-ritmo diferenciados, em recombinações do calçar os sapatos, em pedaços de outras ações que viravam outras coisas, outros desejos: “(...) comportamento restaurado pode ser aprimorado, guardado e resgatado, usado por puro divertimento, transmutado em outro, transmitido e transformado.” (SCHECHNER, 2003, P.35).
Lica usava como ferramenta o próprio corpo, diferente dos outros em que o objeto era passaporte para a ação, seu cobertor era apenas um utensílio para o mote maior: o ato de acordar. Este era o foco. Portanto, seu corpo era o principal meio de ritualizar, de transpassar, de agir. Pode-se dizer assim, que ser ou não um ritual depende tanto do desejo em si mesmo, quanto o que é feito. Portanto, a fluidez do exercício deveu-se à propensão dos fazedores e na fluidez das atividades comuns em relação ao tempo real e ao espaço diferenciado, deslocado.
                                                                                                     Marcelo Rocco  



[1] Apenas um desvio do olhar, sem juízo de valor, mas não pude deixar de perceber que os guarda-municipais não deixavam ninguém deitar nos bancos, mas viam-se casais em situações íntimas, de carícias sexuais e isto não parecia incomodar. Acredito que a relação de poder que se estabelece nos bancos (de não poder deitar) tem a ver com o fato dos andarilhos não terem dinheiro, o seja, os atos sexuais disfarçados podiam ser públicos, o que deve permanecer escondida é a pobreza, talvez porque ela gera culpados, responsáveis por ela.

Um comentário:

Clóvis Domingos disse...

Que bom ter o relato do Marcelo Rocco aqui. Um obsceno onde quer que esteja. Gostei das tuas observações, e acho que a possibilidade de experimentação realmente foi muito ampla e diversificada. E sim, a pobreza incomoda os espaços públicos e a maioria das cidades quer negá-la ou escondê-la. Uma questão: se a rua também virou casa para os excluídos, o que seria da ordem do privado e do público?