Pode-se
dizer que a aplicação prática dada ontem pelo Obscena criou um lugar propício
para a instauração do “comportamento restaurado”, diante da repetição de ações cotidianas em espaços que,
socialmente, não são “próprios” daqueles atos. O “comportamento restaurado”,
segundo Richard Schechner, é o processo chave de todo tipo de performance, no
dia-a-dia, nas curas xamânicas, nas brincadeiras e nas artes. O “ser”
performance é um conceito que se refere a eventos definitivos e delimitados,
marcados por contexto, convenção, uso e tradição. Tratar o objeto, ou obra como
performance significa investigar o que esta coisa faz, como interage com outros
objetos e seres, e como se relaciona. Na vida cotidiana, pode-se dizer que
ritualizar é refazer minuciosamente, ou seja, exibir de maneira intencional as
possibilidades, podendo chegar ao extremo, sublinhando uma ação para aqueles
que a assistem.
Nina
escolheu um lugar: a praça. Sentou-se no banco embaixo de uma árvore, colocou
sua toalha e pasta de dente ao lado e pôs-se a agir, escovando os dentes em
meio às pessoas que passavam por ela. Apesar de a ação ser em um espaço
público, Nina não pareceu estabelecer relação direta com os transeuntes, seu
foco era outro: deslocar uma ação íntima, privada para o lócus compartilhado,
deixando parte de sua intimidade diária à mostra. O ato continuum era o que parecia almejar. Embora a ação fosse a
mesma, os eventos sucessivos eram diferentes em tempo e ritmo, por que eram
marcados de forma diferenciada. Em outras palavras, a particularidade de cada
gesto de Nina estava não apenas na materialidade testada, mas na atividade da
perfomer e em sua interatividade com os objetos deslocados:
Comportamentos
restaurados são comportamentos vivos tratados como um cineasta trata um pedaço
de filme. “Esses pedaços de comportamentos podem ser rearranjados ou
reconstruídos: eles são independentes do sistema causal (pessoal, social,
politico, tecnológico), que os levou a existir.” (SCHECHNER, R. O que é performance?. In O Percevejo, ano 11, 2003, n. 12,
p. 25 a 50)
A deslocação espacial causava o estranhamento,
pois a higienização bucal em vias públicas geravam dados ao olhar passante.
Obviamente, estranho não pareceria às outras pessoas que moram na praça, que
estão nela e fazem dela o seu cotidiano, fazendo suas necessidades, tendo suas
afeições, bebendo e comendo naquele espaço diariamente. Para eles as ações da
Nina e da Joice eram banais, se misturavam em meio aos andarilhos. Joice lavava os pés, ambas buscavam o lugar
da higienização pessoal. Isto me fez pensar que estar limpo parece ser o grande
ritual diário dos seres humanos, não só por si, mas pelo convívio com os
outros. Estamos na era da higienização excessiva, a Imagem pede, determina. Por
isto talvez, que os “ditos” não limpos estão sendo levados para fora da cidade,
para longe, pois eles não se enquadram nos padrões diários da boa limpeza como
bom costume, dos cheiros excessivos dos perfumes, porque, talvez, eles se
sintam à vontade com o próprio cheiro, enquanto nós não nos damos a
possibilidade de sentir, de cheirar, de suar, ou seja, negamos o nosso corpo
cotidianamente.
Já
dentro do Centro Cultural da UFMG havia certo conforto e um risco menor, os
espaços institucionais permitiam uma abertura às ações, não me causava
estranhamento nem aos outros olhares. Como a proposta podia partir do
interno-externo, parecia que o trabalho dos performers caminhava para uma
experiência íntima, independente do outro. Vi Clarissa fazendo uma espécie de
altar com os seus cigarros, todos ao redor. Um santuário de fumaça. O sentido
estético era bem forte em seu trabalho, havia uma clara composição dos
materiais. Os cigarros acendiam, um a um. Clarissa desejava o fogo, queria
queimar, queimou os cigarros, a caixa, a carteira. Não parou. Parecia que
levava ao extremo o seu prazer de acender, de fumar. Os cigarros entronizados
por ela verteram, o vento derrubou o altar. Uma pena, o vento poderia ter
esperado os cigarros ardendo mais um pouco, pelo menos o tempo de eu tirar as
fotos. Apesar de sua forte dimensão estética, vi que sua consciência não estava
em fazer arte para o outro olhar, mas para si, em uma disposição de materiais
que poderia mover, que mandaria. Este é o nosso poder sobre o objeto, podemos
fazer o que quisermos com ele. O objeto está ao nosso serviço, ele se entrega
na lógica do fluxo que damos. O cigarro se desnudou em suas mãos e em sua boca.
A performer estampava o seu desejo, manuseava o poder que tinha sobre o ato de
fumar.
Clovis
trocava os sapatos em tempos-ritmo diferenciados, em recombinações do calçar os
sapatos, em pedaços de outras ações que viravam outras coisas, outros desejos:
“(...) comportamento restaurado pode ser aprimorado, guardado e resgatado,
usado por puro divertimento, transmutado em outro, transmitido e transformado.”
(SCHECHNER, 2003, P.35).
Lica usava como ferramenta o próprio
corpo, diferente dos outros em que o objeto era passaporte para a ação, seu
cobertor era apenas um utensílio para o mote maior: o ato de acordar. Este era
o foco. Portanto, seu corpo era o principal meio de ritualizar, de transpassar,
de agir. Pode-se dizer assim, que ser ou não um ritual depende tanto do desejo
em si mesmo, quanto o que é feito. Portanto, a fluidez do exercício deveu-se à
propensão dos fazedores e na fluidez das atividades comuns em relação ao tempo
real e ao espaço diferenciado, deslocado.
Marcelo
Rocco
Um comentário:
Que bom ter o relato do Marcelo Rocco aqui. Um obsceno onde quer que esteja. Gostei das tuas observações, e acho que a possibilidade de experimentação realmente foi muito ampla e diversificada. E sim, a pobreza incomoda os espaços públicos e a maioria das cidades quer negá-la ou escondê-la. Uma questão: se a rua também virou casa para os excluídos, o que seria da ordem do privado e do público?
Postar um comentário