1 - Você me emocionou muito ao se referir à performance e à
intervenção urbana como ações artísticas que nos convidam à ética e à
alteridade. Entendo que a obra se faz com a participação do outro, do
transeunte da cidade e que ao mesmo tempo que provocamos também somos
provocados. Você falou em "reflexividade". Uma ação performática é
uma troca, um diálogo, um jogo, uma aventura, algo que se desvela no instante
mesmo, no imprevisto, nos coloca no terreno da abertura ao outro.
Seria essa a dimensão política desse tipo de intervenção humana e artística?
Foto de Clarissa Alcantara
Sim. A dimensão provocativa da
performance pode acontecer de muitas formas, mas acho que no caso da
intervenção urbana existe um espaço de risco que envolve o outro de maneira mais
radical. Tem um deslocamento do lugar do artista na sociedade. Quem passa por
uma intervenção já faz parte dela, mesmo que seja perguntando “o que é isso?” A
obra se instaura nessa instabilidade em relação a tudo que acontece. A ação não
tem limites definidos, a forma entra na lógica do devir. Existe uma dinâmica de
inclusão que alimenta a intervenção e transforma a percepção do performer em
relação a si mesmo, o que ele faz, o que atua sobre ele, até que ponto ele
suporta o que provoca, ou provoca aquilo que suporta, etc. Então é impossível
negar a presença do outro, por mais difícil que seja, pois nem sempre a reação
das pessoas é agradável, as vezes incomoda. Mas quando incomoda fica mais
interessante, pois tira o artista do pedestal protegido da “obra”. Para mim, uma questão importante é : como se
relacionar com o outro sem se impor nem se diluir? Será possível atuar com o
outro em sua diferença? A reflexividade tem a ver com essa dificuldade de não
igualar as coisas nem as pessoas, nem julgar o certo ou errado, mas fazer uso
de tudo, deixar-se usar também, compartilhar o acontecimento em sua
singularidade, entrar no campo da imprevisibilidade. O performer é agido ao
agir, tem um estado de receptividade que passa pela afirmação máxima da vida,
pela abertura de infinitas possibilidades de existência ali - naquele momento
em que você mesmo se torna algo que ainda desconhece. Grotowski fala de um
“estado de nascimento” do ator. Tem essa dimensão ritual da ação que revela o
que antes estava oculto ou era desconhecido. Mas diferente do ator no teatro,
na intervenção em espaço público o performer não está no centro deste processo
de revelação, ele aciona situações que desdobram possibilidades de vida. É um
mergulho no devir das coisas, que coloca em jogo os limites do corpo, da
cidade, da sociedade, da cultura, etc. como campo de forças em que o outro atua
tanto quanto você, mesmo se isto não fica explícito. Acho que o mais legal da
intervenção é a sutileza do que realmente nos abala, tem a ver com desconstrução
das estruturas de linguagem, aquilo que Guattari fala de banho caósmico nas matérias de sensação, a partir das quais tornar-se-á
possível uma recomposição, uma recriação, um enriquecimento do mundo, uma
proliferação não apenas das formas mas das modalidades de ser. O que eu chamei de reflexividade lá na
mesa do Performatite passa por essa ética-estética da alteridade.
2- Você fez uma bela provocação: nem sempre a Performance pode ser considerada
uma PERFORMATITE, no sentido de inflamação, incômodo, de um vírus que
transforma as pessoas, os espaços, os conceitos etc. O grande perigo seria a
performance já estar capturada e domesticada, não é mesmo? Ou
institucionalizada?
Acho que a domesticação das
manifestações artísticas é uma tendência “natural” do mercado. Pois é preciso
atuar em campo seguro, o consumidor de arte quer garantias em relação ao
produto (mesmo se isto for uma performance), assim como o estudante, o
professor e as instituições de ensino querem garantias em relação à eficácia dos
processos de transmissão e produção do conhecimento. Até aí tudo bem, mas o
problema é quando a gente situa a performance como zona de atravessamentos
entre arte e não arte, isto desmancha as especificidades que sustentam o lugar
das coisas. Acho que tudo pode ser capturado e domesticado rapidamente na
sociedade de consumo em que vivemos, a performance também. Mas existe uma
dimensão processual da performance que coloca em jogo a relação do artista com
a sua própria vida. Essa dinâmica arte-vida é complexa. Eu gosto muito de
desenvolver os espaços do erro, o acidente, aquilo que não aconteceu conforme
eu esperava, esses desvios são importantes no processo de pesquisa. Não falo de
pesquisa apenas no campo acadêmico, falo de pesquisa como algo que move a própria
elaboração artística como algo infinito, pois uma performance é apenas parte de
outras coisas que são colocadas em questão pelo performer enquanto ser social e
político. Acho que essa inquietação não é institucionalizável, mas pode e deve
dialogar com as instituições que também precisam disso. Tem aí uma capacidade
de resistência e de reinvenção do lugar das coisas, a subversão na performance passa
por isso que tudo afirma na medida em que transforma, atravessa formas, traça
transversais que apontam outras possibilidades de vida e nisso contagiam,
comunicam o que ultrapassa o entendimento.
3- Foi uma delícia me aproximar dos artistas-pesquisadores do Líquida Ação. E o
que o PERFORMATITE provocou no teu coletivo? Não participei do banho no
Chafariz em Ouro Preto
(proposta de vocês), me relataram que foi um ritual maravilhoso. Quais foram
tuas sensações e percepções?
O encontro com os obscênicos, o
N3Ps, o Quando Coisa e os Laranjas Podres nos encheu de energia para continuar
investindo em modos diferenciados de produção artística através de colaborações
e parcerias. Saímos do Performatite dizendo SIM É POSSÍVEL. As propostas de cada
coletivo tão diferentes estavam conectadas com questões contemporâneas que envolvem arte e
cidade. Os processos coletivos de elaboração das ações em Ouro Preto foi um
aprendizado. A confiança gerada pela escuta de todos durante as ações foi
emocionante. O ambiente de troca realmente se estabeleceu de maneira intensa e
acho que isto proporcionou um diálogo político, social e estético com a cidade
de Ouro Preto. As imagens da Clarissa e os vídeos da Nina gritam a beleza desse
encontro. O banho final diante do chafariz seco celebrou o acontecimento,
consagrou nossas cabeças em pacto-impacto estético.
2 comentários:
Muito bom ver-ler-ouvir as provocações de um encontro tão singular!
Que alegre encontro!
Viva!!
Ei Tarcisio, que bom ter teu comentário. Esse encontro de coletivos artísticos foi uma alegria mesmo. Mútuas provocações. Estamos tentando continuar esse diálogo.
Um abraço, Clóvis.
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