Às vinte horas estava ela já molhada, com uma sacola de brinquedos na mão esquerda e um balde d'água na direita. Ela quer lavar suas dores e também limpar de si toda a conformação que o 'mercado da buceta' a imprimiu durante esses 28 anos de vida. Acompanha o procedimento de Patrícia, em seguida o de Saulo e enfim, convida o público a acompanhá-la a Alameda. Está nua por baixo do vestido transparente e molhado. Mas, as pessoas não querem se incomodar com esta mulher molhada que desce a rua. Medo? Indiferença? É teatro? Enfim, seja o que for é melhor continuar no ponto de ônibus e ir para casa descansar para o outro dia de trabalho...
Escolhe um canto mais iluminado da calçada do Parque Municipal, quase em frente ao Hospital da Previdência, onde nascera. Ali será o local do despacho. Chama as mulheres para brincar de casinha e pede ao rapaz que apenas observe. Ele é gentil e mantêm-se onde nós o permitimos ficar. Ela distribui os brinquedos, primeiro Lica ganha uma vassoura e um rodo, ela varre o espaço para construirmos a casinha. Nina ganha o jogo de chá, Patrícia o jogo de bloquinhos de montar 'o castelo', as demais ganham panelinhas, fogão, cestinhos... Todos os objetos são miniaturas.
"A miniatura é uma das moradas da grandeza."
"A miniatura estende-se até as dimensões de um universo. O grande, mais uma vez, está contido no pequeno."
Gaston Bachelard, 'A poética do espaço'
Trabalhar com objetos que representatam 'o quê' a sociedade reserva à educação da mulher, estando estes em forma de miniatura é o que a interessa. Concentrar imagens dilatadas. Condensar na miniatura a história que há séculos vem escrevendo para a mulher. O manual de boas maneiras pequeno burguês exemplificado minimamente e universalmente. ?O 'mercado da buceta' em miniatura dentro do grande mercado que é nossa vida cotidiana.
Ela sente-se como uma carne no açougue. Uma carne tenra, suculenta que muitos querem comer, mas nenhum até agora quis germinar, frutificar. O homem consome a mulher e a ainda a presenteia com os objetos que farão suas vidas mais gostosas e fáceis. E na loja de brinquedos isto está bastante claro: liquidificar, batedeira, geladeira, carrinho de supermercado, bebês, bonecas sexis, tudo em miniatura para criar e educar 'mini sexis donas de casa super poderosas vacas maravilhas' que à noite irão se entupir de cremes e remédios anti tudo que é natural para manter uma aparência representativa da boa mulher comedida e respeitada.
É possível manter-se fora desse esquema? É possível amar um homem sem ser sugada por ele? É possível conceber um filho e não ter que se responsabilizar sozinha por este ser humano nascido de dois seres humanos? É possível ser desejada mesmo não sendo conivente com a beleza midiatizada programada escolhida? É possível ser quem sou? Ou mesmo exercitar o meu ser sem ser?
Ela e Lica decoram a grade do Parque com retalhos de seda enquanto as demais recolhem folhas secas para brincar de comidinha. Não infantilidades nas ações, há o jogo, o corpo prontificado por uma memória de infância suscitada pelo objeto. A tradição que constrói e transforma nossos corpos em 'corpos dóceis'. Em roda as mulheres já serviram chá ao rapaz e assim ela o permite sentar-se.
Uma mulher se aproxima quer saber o preço da calcinha que foi colocada na grade. Ela pergunta pra mulher quanto ela daria pela peça _uai? eu num dou preço não o preço quem tem que dá é ocê que tá vendendo! sua voz estão meio amolecida pela bebida, mas ela toma uma coca-cola.
Lica assume a negociação. Entre preço e perguntas a mulher desabafa _ eu nunca tive a oportunidade de brincar de casinha, já pequena eu tinha que ajudar em casa, só agora com minha filha que eu posso brincar. _minha filha tem Lupos, eu descobri esse ano. _Mas quanto é a calcinha mesmo, cinquenta centavos?
E assim, a mulher ficou ali com as outras mulheres e mais duas outras vieram muito timidamente, olharam mas não quiseram olhar-se no espelho. Outras olharam-se, ajeitaram os cabelos, assim como Ana, que muito traquilamente admirou-se. Um momento belo. Uma mulher reconhecendo sua imagem no espelho vagabundo.
Ela não olhou-se. Sabia exatamente como estava e não queria mais que a imagem central construída. Os cabelos molhados escorridos na testa, os seios eriçados, o ventre e bunda proemientes, pés no chão e a menstruação escorrendo pelas pernas...
Ela precisa de sangue, ela precisa de espaço. Ela não quer 'mais do mesmo' e caminha em busca daquilo que não é premeditado e sim daquilo que é ação.
Por fim, após angariar duas calcinhas a um real cada a mulher se despede das qeu brincam, fala sobre generosidade e humildade antes de ir, abençoa a todas e vai, não sem antes querer levar consigo o rapaz que nos acompanhava. De fato é um moço belo.
Ela vai para o centro da casinha. Coloca numa cestinha coberta de seda as quatro alianças qeu trazia em seus dedos, representações de um amor, deposita-a a seus pés, recolhe o balde d'água e entrona-o em si, da cabeça aos pés. Sacode-se como uma cadela e saí avante, sem olhar para trás.
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