Entrevista realizada por Clóvis Domingos no Teatro Klauss
Vianna durante o FID (2012) no dia 27 de Outubro, antes da segunda apresentação
do espetáculo PIRACEMA (Piracema
é o nome dado ao período de desova dos peixes quando eles sobem os rios até
suas nascentes para desovar. O termo tem origem na língua tupi e significa
"saída de peixe", através da junção dos termos pirá:"peixe"
e sem "sair"), o mais novo trabalho da Lia Rodrigues Cia de
Danças (RJ) criada em 1990. Nessa entrevista para mim ficou a certeza de que a dança,
entre outras manifestações artísticas, pode pensar nossa relação com os espaços
da cidade.
1 - O
meu interesse atual sobre teu trabalho é a temática que vejo em seus
espetáculos, que é de “como vivermos juntos”. Isso aparece em POROROCA, de 2009, que assisti em
Agosto no Teatro Sérgio Porto esse ano; e agora em PIRACEMA (2011), apresentado no FID. POROROCA é um cardume de peixes-bailarinos ruidosos, solares, com
corpos explodindo no encontro com a diferença e com o outro. Ontem, ao assistir
PIRACEMA, senti uma atmosfera mais
lunar e melancólica, uma tristeza de nos pensarmos tão solitários, realizando
cada um sua coreografia pessoal, mas todos tentando sobreviver e lutando para
resistir. Há um momento no espetáculo em que uma bailarina canta “é impossível
ser feliz sozinho”. É nisso que você acredita quando decide trabalhar
colaborativamente com seus bailarinos e quando se muda para a Favela da Maré (conjunto
de comunidades populares na cidade do Rio de Janeiro)?
Lia: Eu acho que isso são escolhas de vida. Eu posso
conversar isso com você de uma forma mais pessoal, claro, mas eu tenho já um
tempo de vida, tenho 57 anos e é claro que durante esse tempo todo eu aprendi
algumas coisas e tive algumas experiências na vida e no trabalho. Para mim é
muito importante trabalhar junto, com, isso faz parte da minha escolha. É uma
escolha. Não que a gente não possa ser feliz... Pessoas podem ser felizes
sozinhas. Mas para mim quando meu trabalho fica mais legal é quando estou
trabalhando junto com as pessoas. Quando a gente está junto com alguém. Então
na relação com os bailarinos, por exemplo, é com meu encontro com eles e com o
que eles são, é que se vai produzir uma terceira coisa. E eu acho que meu
encontro com a Maré é também assim. E o outro é sempre diferente. E tem uma expressão
que eu acho legal: “a gente tem que outrar”. A gente tem que virar o outro. Não
virar o outro totalmente, mas olhar para a diferença e achar uma coisa que às
vezes não combina, mas não faz mal, a gente está junto mesmo sem combinar, não
precisa ser igual. Não dá para ser igual.
Espetáculo "Pororoca". Foto de Sammi Landweer
Espetáculo "Piracema". Foto de Sammi Landweer
2 -
No
agrupamento OBSCENA, do qual sou pesquisador, investigamos as questões do
espaço público, seus usos e proibições e a alteridade banalizada que vivemos
hoje. A cidade se transformou num lugar de passagem e não mais de
possibilidades de encontros e trocas humanas. Estamos ocupando o mesmo espaço,
como em PIRACEMA, mas não estamos
juntos de fato. Como provocar uma POROROCA
(A palavra pororoca é de origem tupi e significa estrondo forte e barulho
da natureza. A pororoca é um fenômeno natural que ocorre quando há o encontro
entre as águas de um grande rio com as águas do oceano) na cidade?
Lia: Ih, gente, sabe que eu não tenho a menor ideia. Não sei.
Eu acho que talvez a gente pudesse pensar que cada um já provocando umas
pororocas, várias pororocas fazem uma “pororocona”, um “pororocão”. Talvez a
gente possa pensar cada um como que a gente provoca essa utilização diferente
do espaço público, como é que a gente se provoca a si próprios também, na
relação com o outro principalmente, nas posições que a gente toma quando faz
escolhas, quando a gente vota, mas quando a gente escolhe onde dançar, por que
dançar e como dançar. Eu falo dançar, mas pode ser performar, se você quiser, né? É difícil falar, tem tantas pessoas
que a gente admira realmente, pessoas que se dedicam a essa questão, eu me
sinto pouco preparada para responder essa sua pergunta, para dar uma resposta
de alguma coisa que eu pudesse fazer. Mas dentro do que eu faço eu procuro pensar
sobre essas coisas e estar com pares que pensam sobre isso também.
3 - Numa
visada de tuas obras coreográficas parece-me que teu trabalho é sempre um
estudo sobre o corpo. Uma desconstrução de um corpo dado como forma definitiva
e “vestido” pela cultura, para reconstruí-lo em “FORMAS BREVES” (2002), um corpo “ENCARNADO” (2005), nos revelando “AQUILO DE QUE SOMOS FEITOS” (2000). Tua dança para mim é sempre um
convite a um exercício de deslocamento da percepção do corpo. O Hans-Thies Lehmann,
no livro “Teatro Pós Dramático”, afirma que o político na cena hoje é o
“político da percepção”. Isso dialoga
com o que você busca em seu trabalho artístico?
Lia: Eu acho que sim. Eu achei muito bonito o seu texto. Eu
acho que seu texto é uma visão que eu fico assim comovida de pensar que você se
dedicou um tempo a pensar sobre o que eu produzo. Isso é sempre para mim uma
coisa muito importante. Eu fico sempre admirada: nossa! Alguém está pensando
sobre aquilo que eu fiz... Que coisa! A gente não tem muita essa noção assim...
A gente tem tantas coisas que nos ocupam a cabeça, coisas cotidianas, então às
vezes é difícil, às vezes dá uma solidão. Então é muito bacana pensar que tem
alguém pensando sobre o que você faz. Eu acho que assim, o Jacques Rancière que
fala da “partilha do sensível”, que a política está nesse lugar. Isso que você
falou me lembrou essa questão: como a gente partilha um outro lugar e que essa partilha dessa sensibilidade é que é
uma questão política. Não sei falar muito bem sobre isso, mas eu percebo assim o
que você me falou.
4 - Seu
próximo trabalho será mesmo PINDORAMA
para completar a Trilogia das Águas? Começa quando o processo de criação?
Lia: Eu acho que não existe uma coisa que começa porque a
gente está sempre pensando. Estou sempre pensando sobre o que produzo, produzi
e para onde eu vou. Então já comecei muito tempo lá trás quando eu fiz
PIRACEMA, POROROCA, FORMAS BREVES, eu já estava pensando sobre isso, eu não
tenho um momento. Tem um momento onde as coisas tomam uma forma que a gente
apresenta, que a gente põe no mundo, né? Mas eu acho que eu tô elaborando há
muito tempo e pensando: será que é uma trilogia? Não, eu não quero que seja uma
coisa que encerra, eu gostaria que fosse uma coisa que me catapultasse para um
outro lugar. Então quando eu falo tríptico eu gosto mais, porque essa ideia de
trilogia dá uma ideia de uma coisa que fecha, são essas três... E eu gostaria
de pensar no PINDORAMA, que na verdade é o nome que os índios chamavam o Brasil
antes dos portugueses, é terra das Palmeiras. E não é aquático isso, mas eu
gosto muito do nome. Adoro essa história de PPP, gosto que seja nome de raiz
tupi, eu acho tudo isso bonito, a sonoridade é bonita. Eu acho lindo, mas assim,
eu acho que vai se chamar PINDORAMA, mas pode ser que mude, e eu já estou
pensando nele (esse espetáculo) desde sempre, digamos assim.
5 - Fico
impressionado como você com a tua arte pensa e repensa o Brasil. Assisti ao
vídeo de FOLIA (1996) na FIDOTECA e
fiquei encantado com a força da cultura popular. Percebo também que a maioria
dos seus espetáculos trata de nosso país. O pesquisador em Artes Cênicas
Rodrigo Garcez chama de “antropofagia nômade” a ética do teu fazer artístico.
Como você consegue ser tão local e global ao mesmo tempo e fazer uma arte
mestiça?
Lia: Eu sei que é o jeito que você
olha o meu trabalho. O que ilumina o meu trabalho. Mas eu não penso sobre isso
assim. Mas na verdade eu penso porque eu leio sobre isso. Então as coisas vão
encarnando, para usar a metáfora do ENCARNADO.
O fato de eu estar nessa escolha de estar com a Cia na Maré, também isso muda o
meu trabalho. Mas eu não sei te dizer: ah, muda assim, mas eu estou lá há nove
anos. O meu interesse pela cultura brasileira é desde lá de FOLIA, antes de FOLIA, então eu acho que talvez de alguma forma as pessoas que eu
admiro e que pensam o Brasil, o Darcy Ribeiro e outros tantos, o Mário de
Andrade. O FOLIA é totalmente ligado
ao Mário de Andrade, e tantas outras pessoas que eu adoro ler, eu acho que
talvez isso me alimente de alguma forma e eu fico feliz que isso possa
aparecer. Porque eu acho legal, eu penso sobre isso, é uma questão para mim.
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