Sábado à tarde, 03 de Novembro, em plena Praça da Estação de
Belo Horizonte, um movimento estranho de pessoas chamava a atenção de quem por
ali passava. De um lado havia um expressivo grupo de jovens sentados no chão.
Eles conversavam, se pintavam com jenipapo e
produziam cartazes coloridos com o escrito “somos todos kaiowás”. Depois
prendiam esses cartazes nas árvores. Presenciei pessoas parando e conversando
sobre aquilo. Isso seria uma performance na cidade? Mas de que natureza?
Do outro lado, uma mulher pintada como indígena, ocupava um
espaço branco que aos poucos se manchava com a criação e exposição de pequenas
cruzes feitas de durex vermelho, algumas retiradas de sua boca. Uma cruz
silenciava uma voz, um grito, um choro de dor e revolta. Em outros momentos, essa mulher se sentava em
sua cadeira também vermelha (parecia um trono ou um altar sagrado) e apenas
mostrava algo escrito para as pessoas curiosas que paravam. Palavras como
genocídio, a saga dos índios, a História do Brasil, entre outras, eram apresentadas
como numa narrativa de filme. Mas o olhar da mulher, seu silêncio, suas pausas
corporais, a fixação das cruzes no tecido aberto no chão, tudo isso remetia à
violência e sangue. Um protesto em meio à correria da cidade. Uma instalação plástica
triste e ao mesmo tempo bela. Uma obra de arte.
Essa intervenção coletiva, organizada através de redes sociais,
demonstra a força da ação de uma parcela da sociedade civil, que se indigna diante
da ameaça da morte anunciada pelos nossos índios guaranis kaiowás. Se de um
lado havia um grupo de jovens engajados numa causa social que se tornou
nacional; de outro, o que perturbava era a ação artística criada pela performer
Nina Caetano.
Fotos de Whesney Siqueira
O trabalho “O Espaço do Silêncio” de Nina (pesquisadora do
agrupamento Obscena) pode se configurar como um ato artístico e político. Numa conversa
logo depois do evento, ela relatou que o convite foi destinado a vários
artistas para que cada um pudesse criar sua ação de indignação. Para ela: “uma
ação artística como uma posição em relação a esse silêncio sobre a situação dos
índios no Brasil, esse genocídio que vem ocorrendo há 512 anos. E a gente deixa
acontecer. Eu também. Todos nós”.
No texto “Práticas e poéticas do político” (2012) a autora Ileana
Diéguez aponta para a existência de um traçado de performatividade e teatralidade nas ações e
manifestações sociais e políticas que ocorrem em alguns países da América Latina.
Para a autora haveria uma prática de uma cidadania, que não apenas obedece, mas
se posiciona como dissidente do sistema e busca a visibilidade de questões
desprezadas pelo poder do Estado. Haveria a “alta política” (a oficial) e o “político”,
ou na minha leitura, o micropolítico. Aquilo que podemos operar e transformar
no cotidiano, no pequeno mesmo, fazendo não mais uma revolução, mas um levante.
Haikim Bey em seu livro “TAZ” (Zonas Autônomas Temporárias) fala disso. O
levante aparece e desaparece logo depois. É nômade, temporário e não
capturável. Um ataque às estruturas de controle, essencialmente às ideias.
Interessa-me a relação entre arte e ativismo. Ou então
artivismo. Corpos insurgentes. A prática de uma indisciplina pela poesia e
provocação. Desejos de rebelião e contestação dos fatos. Arte para suscitar
acontecimentos e acometimentos variados.
Outro artista indignado, Leandro Acácio, também pesquisador do
Obscena, veio criar seu ato de manifestação e performação. De cara pintada e
vestindo um longo tecido vermelho, ele se colocou com uma corda no pescoço,
amarrada numa árvore. Metáfora do suicídio diário dos índios kaiowás. Houve
certa tensão nesse momento. A polícia surgiu e questionou o perigo dessa ação.
Mais uma instalação, uma imagem oferecida, um corpo paralisado e rendido a
criar outro “espaço do silêncio”.
Numa leitura dessas performances percebo a importância desses
artivistas ocuparem um pedaço de terra na cidade. Como os índios kaiowás, nós
também estamos perdendo nosso direito ao espaço público. São invasões silenciosas
e silenciadoras a nos constranger, restringir e ameaçar. Estratégias de
submissão e medo. Tudo em nome do lucro, do desenvolvimento industrial, da Copa
do Mundo, da propaganda de uma cidade como modelo a ser seguido.
Sim, somos todos kaiowás. Nós, os cidadãos, os artistas, os
moradores de rua, os vendedores ambulantes, os hippies da Praça Sete, entre
outros. Sim. Nina Caetano Guarani Kaiowá denuncia a luta indígena e a situação
dela mesma como moradora dessa cidade. Quantas praças privatizadas! Lugares
proibidos para o uso livre das pessoas. Proibido deitar. Proibido beijar.
Proibido pisar. Proibido se manifestar. Proibido performar. “Tem autorização
para fazer isso aqui?”.
Ação e Açã
Penso na coragem das pessoas e artistas que se manifestaram
sobre uma questão tão urgente e necessária quanto a dos índios kaiowás.
Autorizaram-se. Quem pode então nos acusar de que somos todos despolitizados?
Esses manifestantes afirmaram o POLÍTICO PELA VIDA. Pode parecer que foram muito poucas as pessoas
que compreenderam a proposta deles. Mas um é MULTIPLICIDADE. Alguma coisa
aconteceu sim naquela tarde de sábado. Conversas, dúvidas, fotografias,
agressões e xingamentos. E tudo isso se espalhará pelas redes humanas sociais e
digitais. E agora pelo meu texto.
O trabalho dos performers não foi apenas uma ação no ou sobre
o nosso silêncio de brasileiros. Mas foi uma “AÇÔ, que na língua tupi-guarani
significa gritar. Para mim o silêncio
gritou. Forte e pungente. Tento criar agora um “texto-voz” para aumentar a potência
desse grito. No chão da Praça da Estação foram derramados pedidos de socorro.
Na performance social dos jovens e na performance artística
dos “obscênicos”, o sentido de comunidade e solidariedade foi resgatado. Lembro uma canção: “Minha gente
somos um, seu solo é sagrado e sobre ele andamos UNIDOS”.
Unidas, essas Performances da Indignação cantaram o sangue
derramado dos guaranis kaiowás, “filhos deste solo que sempre foi mãe hostil,
Pátria Roubada Brasil”.
7 comentários:
maravilhoso, clóvis. como sempre, seu olhar atento, curioso e perspicaz me lê. que lindo o açã, o grito. obrigada!
Um silênciooutro, um grito outro, indianização outra!
mui bem!
Resistência e criação!
Mesmo que ocorra ainda que em pequena escala, é muito importante a informação para o público do que acontece realmente e muito melhor quando apresentadas em ações artísticas.
Parabéns pelas performances e pela matéria.
Clóvis querido, quanta beleza em seu texto. Para mim, ele significa mais do que tem consciência de dizer. Sim, sim, açã é uma sacação genial, um grande achado. Obrigadíssimo!!!
Olá Amor, lindas palavras que me remeteram novamente às imagens daquele sábado. Palavras que lembra-me também do laborioso trabalho que é a reflexão e a ação. Essas duas nos faz querer insurgir contra a desterritorialização aviltante que o "podrer" nos inflige. Mais uma vez parabéns.
Gente, quero agradecer os comentários publicados aqui e os que recebi por e-mail. É muito bom ter um texto seu lido e dialogado!Esse texto me tomou alguns dias e custei a definir o final dele.Muitas questões! O certo é que desejava unir minha voz aos trabalhos fantásticos que testemunhei. Esse meu texto também deseja ser um manifesto,uma performance artística, uma ação ou um açã!
Abraços!!!
Clóvis, leio atrasada, mas encantada pela sua narrativa sensível que descreve as performances e traz reflexões que implica todos: artistas, público, cidadãos, moradores de grandes (ou pequenas ou médias) cidades. Todos deveríamos ser atores políticos.
Gostei muito dos conceitos (e ações) que vc nos propõe.
E, além disso, gostei bastante do texto em si. Foi (é) uma leitura prazerosa.
Um abraço.
Vivi.
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