Havíamos observado, a partir das colocações de um espectador crítico – Davi Pantuzza – que o tapete único, realizado na última interferência feita, no dia 25 de abril, ao causar uma impressão de fixidez, de imagem estática, de quadro, não atendia à imagem contida na proposta inicial, a qual deveria “configurar um único acontecimento: a exposição. Como se fossem nichos, prateleiras ou vitrines[1]”. Queríamos que as pessoas circulassem entre as bonecas, que tivessem liberdade e interesse em interagir com elas. A partir daí, foi possível perceber que, no lugar do tapete de Erica servir como nicho para as três, deveríamos pensar em nichos individuais e, mais, que estes deveriam refletir as bonecas que estariam neles expostas. Erica, assumindo totalmente a direção de arte do trabalho, propôs também uma maior definição visual das bonecas: para Joyce, vinil na roupa e tapete de pelúcia rosa. Para Lica, construir a roupa de noiva a partir de plásticos de embalagem, os quais deveriam, também, constituir o material para seu tapete.
“É teatro? Propaganda? Protesto?”
“Ela está vendendo o quê?” “Que isso que vocês estão fazendo?”
“Hoje em dia qualquer coisa é arte!”
Arte? Teatro? Performance? Teatro Performativo? Teatro pós-dramático?
As artes contemporâneas da cena têm buscado formas que extrapolam o cânone daquilo que, até o século XX, era conhecido por teatro. Ou, por outra, que do século XVI ao século XX, foi conhecido como teatro e que, na maior parte das vezes, se confunde com a noção de drama e de texto escrito, de obra literária. Quais os paradigmas contemporâneos que permitem mensurar se determinado experimento ou obra é arte? Ou se é teatro? Aliás, pós-cinema e pós-televisão – suportes que, em geral, elegem o modelo dramático como visão de mundo – qual seria a especificidade dessa arte presente e imediata? Qual seria o seu valor?
Sábado, 16 de maio. 11 horas da manhã. Praça Sete. O prédio do PSIU, sintomaticamente ele em obras também, estava coberto de tapumes cor de rosa. Bom augúrio.
Primeiro descemos Lissandra, eu e Erica. Já neste momento, a noiva – linda em seu vestido de plástico de proteger geladeira, branco, ela Branca de Neve – causa impacto. Ela sai pela esquerda: dará voltas na Praça, antes de instalar seu tapete/caixa/casa.
Erica começa a montagem do seu tapete de revistas e brinquedos de menina: brincar de casinha. Ela sugere: “escolha também imagens que você ache que o texto interessa. Pode também escolher pela palavra”. Ali, a escolher imagens para o seu tapete, percebo mais um canal de colaboração: como a criação vai engendrando formas coletivas para o trabalho. Essa textura, tecida a oito mãos, se enriquece a cada dia. A oito mãos, eu disse? Como esquecer as colaborações dos olhares espectadores que nos acompanham? Clóvis, sempre presente e perspicaz, hoje (infelizmente, infelizmente!) não estava aqui para ver o fruto de sua provocação.
Pois neste sábado, dia 16, as mulheres transeuntes brincaram de casinha e de bonecas. Ah, a menina, que encantada com a boneca obscênica Joyce, talvez tenha desejado levá-la para casa... Transeuntes, posaram com a noiva, secretamente a invejá-la, ela, a mulher mais feliz do mundo. Como posaram também os homens que, pais ou noivos, secretamente a desejavam: bela noiva de transparências e calcinhas vermelhas.
Neste sábado 16, uma síntese aconteceu: a ação, mais concentrada e direta, causou espécie (como diriam os literatos). Os escritos a giz ganharam uma relação imediata com cada um desses nichos/bonecas e puderam estabelecer redes de sentido entre um e outro. A partir da boneca de giz de uma, mulher morta no chão, construir significâncias para a outra. De bonecas a mulheres mortas. Samy, 20 anos, loirinha e sapeca como você gosta. Da noiva mais feliz do mundo à dona-de-casa, mulher de cama e mesa. Agradar. Sorrir. Seduzir. Brincar de bonecas. Domesticadas pela TV, sonhamos ser loiras e brancas. Silicone. Botox. Lipoaspiração. A mulher mais amada e desejada do mundo. Corpos blindados para um inventário de tarefas inúteis. Segurar. Casar. Servir sempre para servir melhor. Casar. Casar. Casar. Brincar de casinha. Amar. Apanhar. Perdoar. Esquecer. Não mais ser. Morrer. Ser morta. Destruída. Espancada. Estuprada. Excomungada.
Barbies quebradas. Prontas para o consumo imediato.
Nina Caetano.
[1] Email de 06/10/2008, no qual lancei a proposta de se fazer uma exposição de bonecas.
Um comentário:
Nina, parece-me que realmente o trabalho foi muito instigante e produtivo. Tudo colaborou para o ACONTECIMENTO. O Obscena conseguindo tecer uma rede colaborativa entre seus criadores e os espectadores e descobrindo como potencializar cada vez mais as intervenções urbanas. A força da ação está no fato de se envolver o Outro e depois, num jogo de mestre, provocá-lo a pensar distanciadamente nas ações e imagens propostas. De qualquer forma o que me interessa é este lugar de problematizações que o trabalho coloca tanto para os habitantes da cidade quanto para os artistas-criadores.Parece-me também que o trabalho apresentou-se como uma ENCENAÇÃO DO INSTANTE, isto é , ações planejadas e executadas num determinado espaço , com um roteiro de ações flexíveis e aberto às infiltrações dos transeuntes e uma proposta mais definida. A pesquisa cresce e aponta novos lugares e questões.
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