Neste dia, optamos por fazer uma interferência no horário de saída de escola e fechamento do comércio, ou seja, no olho do furacão. Joyce testaria sua nova maquiagem, de boneca de louça. Erica o figurino de rainha do lar, dona-de-casa santificada. Eu, o desenho dos objetos e a escrita fora dos corpos. Neste dia também, tínhamos "convidados ilustres", os quais chamamos a participar do trabalho a fim de nos dar um feedback, um olhar para além daquele dos pesquisadores obscênicos que nos acompanham desde o nascimento das bonecas, um olhar "virgem", mas especializado: Mencarelli, professor do curso de artes cênicas da ufmg, Clarissa, pesquisadora da performance, e Júlia Mendes, atriz e jornalista, além de Garrocho, pesquisador e filósofo (que, infelizmente, não pôde ficar até o fim do trabalho para o tão esperado feedback).
Investimos, mais uma vez, na mudança estrutural proposta por Clóvis: primeiro, a instalação da exposição para, somente depois que esta estivesse instaurada, partirmos para as mulheres mortas, desenhos de corpos marcados a giz no chão.
16:30, praça cheia. Eu e Erica escolhemos o local de seu tapete, depusemos as revistas e comecei a escolher imagens. Ela busca a água e logo começa o seu trabalho. Joyce, já na praça, instala seu tapete. Lissandra, de noiva a passear pelos entornos. Terminado o tapete da Nêga, começo a buscar os pequenos objetos que comporão pequenos "quadros" a giz, quase retratos destes objetos mortos.
Os desenhos, infelizmente, não traduzem os objetos que desejo: o pires vira um simples círculo, a bolsa, um retângulo. Tento dar a forma dos objetos reais em seus desenhos a giz. escrevo: brincar de casinha, brincar de boneca. não estou satisfeita. Os objetos escapam ao desenho. Opto por dar vazão à escrita fora dos corpos que ainda não se deitaram: escrevo listas de tarefas da mulher ao lado do tapete de Erica. Ela, então, já com seu figurino montado no cabide-corpo, disponibiliza-o para a marca. Traço a silhueta deste corpo-manequim no chão e nele escrevo. É o primeiro corpo do dia.
O fluxo de pessoas me impressiona. Nunca tivemos tanto "público". A praça, lotada, dificulta a visão das bonecas e mal localizo Lissandra dentro do círculo de pessoas que se formou ao seu redor. Ela me vê, deita-se no chão. Desenho seu corpo. Um bêbado de rua pede: "me desenha também". Ele se deita e faço o contorno do seu corpo ao lado do dela. Corpo de homem. Nosso primeiro e dentro dele escrevo: homem. humanidade. ser humano dotado de qualidades viris como força, coragem.
Desta vez, o ritmo acelerado da cidade acelera o ritmo da interferência. Para mim, ela passa muito rápido e desenho poucos corpos, poucos demais. Quando vejo, as três já estão deitadas na área central, meio dos tapetes. É o sinal do nosso fechamento. Traço seus corpos. O bêbado novamente se deita e, pasmem! Um homem, a caminho da aula, deita-se ao lado dele. Ao lado das bonecas adultas, mais duas, a grata surpresa: duas meninas esperam, felizes, que eu trace seus corpos no chão, que eu torne um pouco mais durável suas presenças em nossa ação. Grata surpresa. Silhuetas de meninas em meio aos corpos das mulheres mortas. O primeiro impulso é aproveitar os corpos e falar da pedofilia. Mas, diante de seus sorrisos, a coragem me falta e prefiro falar da educação das meninas, de seus brinquedos cor de rosa e das qualidades que uma garota já deve demonstrar para ser uma futura mulher capaz de conquistar seu homem e cuidar do seu lar. Uma futura mulher, educada para agradar. Uma futura mulher, cumprindo o papel que nasceu para desempenhar... Futuras bonecas?
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