Segue abaixo uma reflexão sobre os assuntos tratados no encontro teórico da última segunda-feira, dia 25/02:
Por volta de 19:15: todos acomodados e mesa posta.
Começamos a refeição principal com “O Narrador”, de Walter Benjamin, após petiscarmos os relatórios do encontro anterior.
E, logo de cara, uma questão na primeira bocada: Como recuperar o corpo do narrador no corpo do ator contemporâneo?
Sempre que ouço uma pergunta iniciada dessa maneira, com o “como” assim no início, sinto uma espécie de arrepio na cervical, que pode evoluir para um calafrio conforme a densidade e o grau de complexidade da problemática levantada pelo restante da oração até o fatídico ponto de interrogação no final.
Talvez haja esse drama todo mesmo só por que o “como” nos coloca um desafio iminente diante do qual não nos resta outra alternativa senão enfrentá-lo, sem escapatória.
E aí, quando realmente é hora de tomar alguma atitude, a coisa aperta pro nosso lado.
Sobre a trajetória da tradição do narrador sendo livremente exterminada através da história, nós lemos, discutimos, compreendemos... agora, daí até recuperá-lo vai ficar difícil. Pode até existir quem conte, quem ainda narre...
Mas não tem quem ouça.
Claro. Pois como bons cidadãos contemporâneos nós sofremos das síndromes esquizofrênicas de passividade. A nossa contemporaneidade é ficar esperando a pós-contemporaneidade chegar, e assim sucessivamente, contando com a possibilidade daquele instante épico quando o sujeito, vestido de branco, pula sete ondas à meia-noite e grita no final: “Coisas boas virão!”, configurando-se este, portanto, como o momento mais vívido e próximo de uma experiência com a ancestralidade alcançada por um indivíduo ordinário.
Somos genéricos, filhos mestiços de ex-narradores, paridos numa sociedade de ouvidos estéreis, ou melhor, numa sociedade que tornou estéreis os ouvidos, por que essa é a nova guerra. Se antes usavam bombas, dinamites e metralhadoras para render, conquistar e dominar o inimigo, hoje usam o “plim-plim!”: às seis, às sete e às oito horas da noite. Os resultados são devastadores, aniquilam o sujeito ali no sofá mesmo, sem arrancar-lhe um membro sequer e sem fazer sangrar. Muito mais econômico e higiênico. Sem contar na relação custo-benefício: dentro de uma TV cabem todos os campos de batalha do mundo.
E, ainda, no intervalo de uma programação para outra, posso ler o horóscopo.
Mas somente o de hoje; dizem que não se pode ler o horóscopo do dia anterior. Dá azar.
Hoje, por exemplo, por qual motivo reparar no passado?
Dá pra tirar algum proveito disso?
Como?
Como resgatar o passado e reaprendê-lo? (Arrepio)
Se a memória foi povoada por slogans:
- “Jovem envenena a irmã por causa de chapinha”
- “Mata mulher e o amante e desaparece misteriosamente”
- “Mata os filhos e comete suicídio”
- “Morre anjinho do Arrudas”
- “Criança é estuprada e violentada em cativeiro durante nove anos”
- “Gatas saradas mostram tudo na Sexy deste mês”
- “Filho espanca a mãe até a morte”
Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido[I] - “Plim-Plim!”.
O bom disso tudo é que, no final, o sangue e as vísceras não vão sujar o meu carpete.
Ninguém mais tece ou fia durante as histórias. Ninguém mais tece ou fia histórias.
Nós comíamos – enquanto ouvíamos Walter Benjamin sob o ponto de vista do outro – um ritual, talvez, da mesma importância. O de comer.
Cachorro quente, bolo, pão-de-queijo massudo e até colomba caseira, homenagem antecipada ao simpático roedor que bota ovos.
Alguém contou pra alguém que esse tipo de anomalia genética é possível.
A gente aceita: metade da arte narrativa está em evitar explicações[II].
Mas o fato é, eu já ia me esquecendo, será que ao invés de recuperar não deveríamos reinventar o narrador? Reconstruí-lo à nossa imagem e semelhança, respeitando sua carga histórica sem idolatrá-la ou tratá-la com saudosismo?
Mas como? (Calafrio)
Enquanto isso, essa é pra você que é de Câncer:
Gasto excessivo de dinheiro o perturbará. Saiba que, devido à influência de Marte, você estará predisposto para isso. Problemas conjugais e com o trabalho. Mas não se preocupe: Coisas boas virão.
[I] Walter Benjamin
[II] Idem
2 comentários:
Moacir, muito bom teu texto.... Como vc escreve bem.... realmente gostei muito.
Aguardo teus novos relatórios obscênicos.
senti-me revirada após ouvi-lo, tanto que agora quero depositar mais e mais sangue sobre os papéis em branco e minhas carnes já apodrecem numa velocidade que não houvera outrora...é assim.
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