“A PERFORMANCE PLEBE DO CREDIÁRIO: AUTOBIOGRAFIA FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISE
ECONÔMICA" – (texto de Clóvis Domingos sobre o trabalho e artigo de Isaque Ribeiro escrito em colaboração com os professores Mariana Muniz e Marcos Alexandre da UFMG).
No
referido artigo o autor se propõe a narrar e refletir sobre o processo de
criação da performance artística Plebe do Crediário, objeto de sua
pesquisa teórico-prática de mestrado. Para tanto, o autor destaca os principais
elementos presentes em sua ação: a utilização de sua memória pessoal, a relação
entre arte e vida (aspecto inerente ao exercício performático) e um posicionamento crítico sobre as ferramentas e
estratégias do capitalismo sobre nossas vidas, nos convidando a nos tornarmos
eternos “devedores” e mantenedores do status
quo.
Imagem de Paola Parentoni
O
autor nos instiga a pensar a arte da performance
como uma possibilidade direta de contestação aos sistemas vigentes, ao se
inserir no cotidiano e tentar provocar rupturas em nossos comportamentos
condicionados. Nas palavras do autor “ o trabalho do performer trata de ativar a percepção, impor quebras ao
estabelecido e destacar a latência do vivo” (RIBEIRO, 2014, p.155). Dessa
forma, o performer agiria como uma
presença desestabilizadora em seu meio, desnaturalizando o óbvio e criando
conflitos nas leituras e signos rígidos de nosso tempo e espaço. Um provocador
e criador de fissuras, cuja prática permeia ações que desafiam a ordem
estabelecida e causam ruídos nos discursos instituídos.
Podemos
pensar a prática da performance como
uma voz dissidente, não só no campo das artes, mas também nos espaços públicos
e sociais. No caso da ação Plebe do
Crediário, essa se forjou a partir de dimensões subjetivas, relacionais,
conviviais e de caráter urbano. A presença de ações artísticas ao invadirem a
cidade, acaba por tensionar determinados espaços e códigos e propor
experiências com forte apelo lúdico, social e político.
A
arte nas ruas pode funcionar como uma prática de resistência numa cidade
comumente projetada como espaço asséptico e espetacular (a “cidade outdoor” na expressão de JACQUES, 2003),
empobrecido de relações humanas e afetivas, no qual o isolamento e o anonimato
imperam. Uma cidade que privilegia, em sua maior parte, o consumo e a
propaganda. No caso da performance de
Ribeiro, me voltam à lembrança as inúmeras vezes que fui interpelado, no centro
de Belo Horizonte, por pessoas me oferecendo cartões de crédito ou outro tipo
de negócio. Fora nossa intensa e veloz movimentação pela cidade, o que a
configura mais como um espaço de passagem e menos de ocupação e permanência.
A
performance Plebe do Crediário foi
realizada do segundo semestre de 2009 até o final de 2010 e em seu processo de
criação, podemos apontar a composição de quatro fases: a coleta de comprovantes
de venda (referentes às compras efetuadas pelo performer em sua vida cotidiana como um ato de colecionar e
perceber-se um consumidor e devedor em potencial), a confecção de origamis (a
transformação dos recibos em origamis, acreditando-se na lenda de que a dobra
de mil tsuros provocaria a realização
final de um desejo, no caso: quitar as dívidas); os pedidos de empréstimos (
desejo de se experimentar novos riscos e perigos) e a ação final ( a
apresentação pública da obra em espaço aberto e a troca de um tsuru por dinheiro doado pelos
transeuntes). (RIBEIRO, 2014, p. 151).
Interessa-me
agora descrever e refletir sobre a última fase da referida performance, por abranger aspectos como participação, risco, acaso
e acontecimento.
Em
seu artigo, Ribeiro nos conta que sua proposição inicial era ficar “encerrado”
dentro de uma caixa de vidro realizando trocas com os passantes da rua e de
alguma forma denunciar a prisão a que todos nós estamos condenados. O
artista-pesquisador ouve comentários de todo tipo: da solidariedade à
agressividade. Interessante pensar que sua presença cria uma interrupção no
tempo-espaço da cidade. Temos uma imagem no mínimo instigante: um homem vestido
de terno podendo simbolizar ao mesmo tempo um prisioneiro. Ou um funcionário de
uma repartição que empresta dinheiro? Tal dispositivo espacial e cênico, acaba
por acionar algum tipo de interação e curiosidade das pessoas diante de algo
inusitado e no mínimo estranho.
A
performance só pode acontecer se as
pessoas de alguma forma participarem. Essa participação, a meu ver, seria como
uma coautoria dos moradores da cidade. São eles que alimentam a obra, potencializam
sua provocação e alargam as possibilidades para novos acontecimentos. Produzem
leituras e significados dissidentes sobre a obra em questão. Ao mesmo tempo,
para o performer, se trata de um momento
de risco e vulnerabilidade. Tudo pode acontecer. No espaço das ruas não há a
proteção de um território fechado e já definido como “lugar de arte”. As
pessoas que param e ali permanecem criam “sociabilidades alternativas chamando
atenção para as questões que permeiam a nossa cultura” (ARANTES, 2012, p.185).
Dessa forma a obra acontece coletivamente.
Já
a presença do performer acaba por
problematizar o sistema econômico e denunciar o fracasso do mesmo. Se há sempre
a recorrência da presença de anunciantes da “felicidade prometida” e seus
sorrisos e doces promessas (pela ação de se adquirir um cartão de crédito), no
caso da performance de Ribeiro, temos
a enunciação do fracasso e do engodo dessa mesma promessa. Eis um cidadão
expondo e incorporando as mentiras do sistema e mais, solicitando a ajuda
pública. Uma “outra versão” nos é mostrada nessa intervenção (ou interversão)
artística urbana. Poderíamos ler Plebe do
Crediário também como uma contraversão, ou até mesmo, “contravenção”, num
sentido mesmo de ilegalidade ao desmascarar o discurso neoliberal.
Uma
ação artística que promove a inscrição do dissenso e do desassossego num espaço
que insiste em permanecer homogeneizado. Nesse ponto já é possível
identificarmos uma forma de operação política. Para Diéguez (2011, p.47) tem-se
hoje a emergência de estados efêmeros de encontro que “dão espaço a gestos de
dissidência e diferença, e que por isso invertem as relações com o que nos
rodeia’.
Em
minha opinião, ao assumir-se como sujeito devedor e fracassado, o performer des-vela a condição de todos
nós, numa abrangência que se desloca do pessoal para o coletivo. Num exercício
cuja a “politicidade do íntimo”
(LONGONI, 2001) atinge de frente nossos desejos consumistas e no contato com as
pessoas as convida a um posicionamento. Acredito que a referida performance possa ter causado certo
mal-estar na cidade por revelar que nosso cartão seria mais de débito do que de
crédito. Oscilaríamos entre o papel do consumidor e do mendigo. Tal abordagem
me ocorre pela posição do performer de permanecer sentado, numa alegoria
corriqueira e habitual da corporalidade de um pedinte. Pedinte de
socorro. Um corpo rendido, coisificado e cansado. Agora refém da “bondade de
estranhos”. Recordo-me de um grafite num muro da cidade: “cartão de crédito:
servidão voluntária”. O sistema se enriquece com nossa adesão e atestado de
“constante pobreza”.
Mais
novos acontecimentos emergem e alteram essa experiência: fiscais da prefeitura
cobram alvará de autorização da realização do trabalho e diante da negativa
exposta, exigem a retirada da caixa que circunda o artista. Com a saída da
estrutura o performer se vê
corpo-a-corpo com os passantes. Escuta conselhos, ganha ajuda, recebe uma
garrafa de água. A intervenção dos agentes da prefeitura causa uma alteração
radical na proposta. Como um “complicador cultural” (FABIÃO, 2008, p.237) agora
o performer precisa sentir “a vida
como sinônimo de imprevisto” (COHEN, 2002, p.97) e se dispor a abraçar aquilo
que lhe acontece.
Imagem de Camila Buzelin
Penso
na relação entre performance e
alteridade: a abertura e escuta do outro. Se o performer deseja provocar e desestabilizar, também é necessário se
disponibilizar para ser provocado, remexido e desprogramado. Não se trata de
uma presença impositiva, mas compositiva. O performer
como amante do desconhecido, nunca quer dominar nada e ninguém, mas se
fragiliza e se assume humano e falível, exatamente aquilo que se nega a fazer
as estruturas de Poder. Até porque para mim o exercício da performance se apresenta mais como uma experiência e um jogo a serem
partilhados e menos um produto a ser apresentado ou vendido. Aquilo que
acontece no contato com os outros se transforma em material e desafio para
ambas as partes. Arte relacional e dialógica.
Uma
“partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2005), do visível e do vivível. A convivência
com a diversidade “não necessariamente no nível de coletividades massivas, mas
também de micro-comunidades e micro-encontros”. (DIÉGUEZ, 2011, p.47). Pensar a
performance como uma micropolítica.
O
artista arrecadou, através da ação vivenciada, dinheiro suficiente para
liquidar as dívidas feitas, mas para mim, sua aprendizagem se deu a partir do
momento que passou a perceber o quanto somos influenciados a gastar sempre mais
e não nos demos conta dessa “teologia da necessidade” (CASTRO, 2008).
Nesse
aspecto, podemos fazer um paralelo no que se refere à questão da produção
artística pelo viés da prática da performance.
Como arte híbrida e “colada” à vida, acredito que seu existir se condiciona a
partir de uma necessidade de urgência. Precária, a performance não necessita de condições financeiras que a
comprometam enquanto desejo e realização e se assume como “aqui e agora” com
aquilo que se possui no momento. Daí a presença corporal e ativa do performer e sua abertura a todo tipo de
interferência. Como um manifesto vivo e urgente, o programa a ser vivenciado
por um performer não pode esperar
pela aquisição daquilo que não existe, se produz com aquilo que se é possível.
Isso pôde ser exemplificado pela performance
Plebe do Crediário.
Nas
palavras de CASTRO (2008) “contra a teologia da necessidade, uma pragmática da
suficiência”. O performer, numa
analogia com o nativo indígena, não deseja se tornar um senhor da verdade e da
razão. Não aceita ser condicionado pelos ideais de desenvolvimento econômico.
Sua arte se dá na imanência do corpo, na instabilidade do momento, na
precariedade da vida, na aceitação da morte e na suficiência do seu desejo
enquanto agente de um discurso, crítico de uma norma, artivista de uma revolta. Ainda que ele não consiga mudar o mundo,
seu modo de viver e fazer arte não está ancorado no princípio capitalista, ele
ainda se alimenta, ainda que utopicamente, da construção de uma sociedade mais
humana e solidária. Pelo menos assim vivo meu projeto como performer.
Referências
consultadas:
ARANTES,
Priscila. Rede, arte e sociedade: utopia ou
distopias. In: Arte e Tecnologia: Modus Operandi Universal. Instituto de
Arte da Universidade de Brasília. Brasília: UNB, 2012.
CABALLERO,
Ileana
Diéguez. Cenários Liminares – teatralidades, performances e política.
Urbelândia: Editora EDUFU, 2011.
COHEN,
Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de
experimentação. São Paulo: Perspectiva- USP, 2002.
FABIÃO,
Eleonora. Performance e teatro: poéticas
e políticas da cena contemporânea. In: Sala Preta: Revista do Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas, ECA-USP, São Paulo, n.08, 2008.
JACQUES,
Paola Berenstein. Apologia da Deriva – escritos
situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
LONGONI,
Ana. La
politicidad de lo intimo.
Homenaje a Tosco. In: Teatro al Sur. Revista Latinoamericana. N.19, edición
especial V, Buenos Aires, Argentina, 2001.
RANCIÈRE,
Jacques. A partilha do Sensível. Rio de
Janeiro: Editora 34, 2005.
RIBEIRO,
Isaque. A Performance
Plebe do Crediário: Autobiografia Financeira em Tempos de Crise Econômica.
In: Fronteiras e alteridade: olhares sobre as artes na contemporaneidade. Org:
Maurilio Andrade Rocha, José Afonso Medeiros Souza. Belém: Programa de Pós-Graduação
em Artes da UFPA, 2014.
Um comentário:
"o performer agiria como uma presença desestabilizadora em seu meio, desnaturalizando o óbvio." Muito bom isso, querido! Como nos lixar, escavar, raspar aquilo que transformamos em óbvio em nós mesmos? Como viver essa instabilidade toda e ainda sim resistir? Viver é um risco, é preciso arriscar!
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