agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

quarta-feira, junho 17, 2015

Performance e fracasso

 “A PERFORMANCE PLEBE DO CREDIÁRIO: AUTOBIOGRAFIA FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISE ECONÔMICA" –  (texto de Clóvis Domingos sobre o trabalho e artigo de Isaque Ribeiro escrito em colaboração com os professores Mariana Muniz e Marcos Alexandre da UFMG). 


No referido artigo o autor se propõe a narrar e refletir sobre o processo de criação da performance artística Plebe do Crediário, objeto de sua pesquisa teórico-prática de mestrado. Para tanto, o autor destaca os principais elementos presentes em sua ação: a utilização de sua memória pessoal, a relação entre arte e vida (aspecto inerente ao exercício performático) e um posicionamento crítico sobre as ferramentas e estratégias do capitalismo sobre nossas vidas, nos convidando a nos tornarmos eternos “devedores” e mantenedores do status quo.

Imagem de Paola Parentoni

O autor nos instiga a pensar a arte da performance como uma possibilidade direta de contestação aos sistemas vigentes, ao se inserir no cotidiano e tentar provocar rupturas em nossos comportamentos condicionados. Nas palavras do autor “ o trabalho do performer trata de ativar a percepção, impor quebras ao estabelecido e destacar a latência do vivo” (RIBEIRO, 2014, p.155). Dessa forma, o performer agiria como uma presença desestabilizadora em seu meio, desnaturalizando o óbvio e criando conflitos nas leituras e signos rígidos de nosso tempo e espaço. Um provocador e criador de fissuras, cuja prática permeia ações que desafiam a ordem estabelecida e causam ruídos nos discursos instituídos.

Podemos pensar a prática da performance como uma voz dissidente, não só no campo das artes, mas também nos espaços públicos e sociais. No caso da ação Plebe do Crediário, essa se forjou a partir de dimensões subjetivas, relacionais, conviviais e de caráter urbano. A presença de ações artísticas ao invadirem a cidade, acaba por tensionar determinados espaços e códigos e propor experiências com forte apelo lúdico, social e político.

A arte nas ruas pode funcionar como uma prática de resistência numa cidade comumente projetada como espaço asséptico e espetacular (a “cidade outdoor” na expressão de JACQUES, 2003), empobrecido de relações humanas e afetivas, no qual o isolamento e o anonimato imperam. Uma cidade que privilegia, em sua maior parte, o consumo e a propaganda. No caso da performance de Ribeiro, me voltam à lembrança as inúmeras vezes que fui interpelado, no centro de Belo Horizonte, por pessoas me oferecendo cartões de crédito ou outro tipo de negócio. Fora nossa intensa e veloz movimentação pela cidade, o que a configura mais como um espaço de passagem e menos de ocupação e permanência.


A performance Plebe do Crediário foi realizada do segundo semestre de 2009 até o final de 2010 e em seu processo de criação, podemos apontar a composição de quatro fases: a coleta de comprovantes de venda (referentes às compras efetuadas pelo performer em sua vida cotidiana como um ato de colecionar e perceber-se um consumidor e devedor em potencial), a confecção de origamis (a transformação dos recibos em origamis, acreditando-se na lenda de que a dobra de mil tsuros provocaria a realização final de um desejo, no caso: quitar as dívidas); os pedidos de empréstimos ( desejo de se experimentar novos riscos e perigos) e a ação final ( a apresentação pública da obra em espaço aberto e a troca de um tsuru por dinheiro doado pelos transeuntes). (RIBEIRO, 2014, p. 151).

Interessa-me agora descrever e refletir sobre a última fase da referida performance, por abranger aspectos como participação, risco, acaso e acontecimento.

Em seu artigo, Ribeiro nos conta que sua proposição inicial era ficar “encerrado” dentro de uma caixa de vidro realizando trocas com os passantes da rua e de alguma forma denunciar a prisão a que todos nós estamos condenados. O artista-pesquisador ouve comentários de todo tipo: da solidariedade à agressividade. Interessante pensar que sua presença cria uma interrupção no tempo-espaço da cidade. Temos uma imagem no mínimo instigante: um homem vestido de terno podendo simbolizar ao mesmo tempo um prisioneiro. Ou um funcionário de uma repartição que empresta dinheiro? Tal dispositivo espacial e cênico, acaba por acionar algum tipo de interação e curiosidade das pessoas diante de algo inusitado e no mínimo estranho.

A performance só pode acontecer se as pessoas de alguma forma participarem. Essa participação, a meu ver, seria como uma coautoria dos moradores da cidade. São eles que alimentam a obra, potencializam sua provocação e alargam as possibilidades para novos acontecimentos. Produzem leituras e significados dissidentes sobre a obra em questão. Ao mesmo tempo, para o performer, se trata de um momento de risco e vulnerabilidade. Tudo pode acontecer. No espaço das ruas não há a proteção de um território fechado e já definido como “lugar de arte”. As pessoas que param e ali permanecem criam “sociabilidades alternativas chamando atenção para as questões que permeiam a nossa cultura” (ARANTES, 2012, p.185). Dessa forma a obra acontece coletivamente.

Já a presença do performer acaba por problematizar o sistema econômico e denunciar o fracasso do mesmo. Se há sempre a recorrência da presença de anunciantes da “felicidade prometida” e seus sorrisos e doces promessas (pela ação de se adquirir um cartão de crédito), no caso da performance de Ribeiro, temos a enunciação do fracasso e do engodo dessa mesma promessa. Eis um cidadão expondo e incorporando as mentiras do sistema e mais, solicitando a ajuda pública. Uma “outra versão” nos é mostrada nessa intervenção (ou interversão) artística urbana. Poderíamos ler Plebe do Crediário também como uma contraversão, ou até mesmo, “contravenção”, num sentido mesmo de ilegalidade ao desmascarar o discurso neoliberal.

Uma ação artística que promove a inscrição do dissenso e do desassossego num espaço que insiste em permanecer homogeneizado. Nesse ponto já é possível identificarmos uma forma de operação política. Para Diéguez (2011, p.47) tem-se hoje a emergência de estados efêmeros de encontro que “dão espaço a gestos de dissidência e diferença, e que por isso invertem as relações com o que nos rodeia’.

Em minha opinião, ao assumir-se como sujeito devedor e fracassado, o performer des-vela a condição de todos nós, numa abrangência que se desloca do pessoal para o coletivo. Num exercício cuja a “politicidade do íntimo” (LONGONI, 2001) atinge de frente nossos desejos consumistas e no contato com as pessoas as convida a um posicionamento. Acredito que a referida performance possa ter causado certo mal-estar na cidade por revelar que nosso cartão seria mais de débito do que de crédito. Oscilaríamos entre o papel do consumidor e do mendigo. Tal abordagem me ocorre pela posição do performer de permanecer sentado, numa alegoria corriqueira e habitual da corporalidade de um pedinte. Pedinte de socorro. Um corpo rendido, coisificado e cansado. Agora refém da “bondade de estranhos”. Recordo-me de um grafite num muro da cidade: “cartão de crédito: servidão voluntária”. O sistema se enriquece com nossa adesão e atestado de “constante pobreza”.

Mais novos acontecimentos emergem e alteram essa experiência: fiscais da prefeitura cobram alvará de autorização da realização do trabalho e diante da negativa exposta, exigem a retirada da caixa que circunda o artista. Com a saída da estrutura o performer se vê corpo-a-corpo com os passantes. Escuta conselhos, ganha ajuda, recebe uma garrafa de água. A intervenção dos agentes da prefeitura causa uma alteração radical na proposta. Como um “complicador cultural” (FABIÃO, 2008, p.237) agora o performer precisa sentir “a vida como sinônimo de imprevisto” (COHEN, 2002, p.97) e se dispor a abraçar aquilo que lhe acontece.

Imagem de Camila Buzelin

Penso na relação entre performance e alteridade: a abertura e escuta do outro. Se o performer deseja provocar e desestabilizar, também é necessário se disponibilizar para ser provocado, remexido e desprogramado. Não se trata de uma presença impositiva, mas compositiva. O performer como amante do desconhecido, nunca quer dominar nada e ninguém, mas se fragiliza e se assume humano e falível, exatamente aquilo que se nega a fazer as estruturas de Poder. Até porque para mim o exercício da performance se apresenta mais como uma experiência e um jogo a serem partilhados e menos um produto a ser apresentado ou vendido. Aquilo que acontece no contato com os outros se transforma em material e desafio para ambas as partes. Arte relacional e dialógica.

Uma “partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2005), do visível e do vivível. A convivência com a diversidade “não necessariamente no nível de coletividades massivas, mas também de micro-comunidades e micro-encontros”. (DIÉGUEZ, 2011, p.47). Pensar a performance como uma micropolítica.

O artista arrecadou, através da ação vivenciada, dinheiro suficiente para liquidar as dívidas feitas, mas para mim, sua aprendizagem se deu a partir do momento que passou a perceber o quanto somos influenciados a gastar sempre mais e não nos demos conta dessa “teologia da necessidade” (CASTRO, 2008).

Nesse aspecto, podemos fazer um paralelo no que se refere à questão da produção artística pelo viés da prática da performance. Como arte híbrida e “colada” à vida, acredito que seu existir se condiciona a partir de uma necessidade de urgência. Precária, a performance não necessita de condições financeiras que a comprometam enquanto desejo e realização e se assume como “aqui e agora” com aquilo que se possui no momento. Daí a presença corporal e ativa do performer e sua abertura a todo tipo de interferência. Como um manifesto vivo e urgente, o programa a ser vivenciado por um performer não pode esperar pela aquisição daquilo que não existe, se produz com aquilo que se é possível. Isso pôde ser exemplificado pela performance Plebe do Crediário.

Nas palavras de CASTRO (2008) “contra a teologia da necessidade, uma pragmática da suficiência”. O performer, numa analogia com o nativo indígena, não deseja se tornar um senhor da verdade e da razão. Não aceita ser condicionado pelos ideais de desenvolvimento econômico. Sua arte se dá na imanência do corpo, na instabilidade do momento, na precariedade da vida, na aceitação da morte e na suficiência do seu desejo enquanto agente de um discurso, crítico de uma norma, artivista de uma revolta. Ainda que ele não consiga mudar o mundo, seu modo de viver e fazer arte não está ancorado no princípio capitalista, ele ainda se alimenta, ainda que utopicamente, da construção de uma sociedade mais humana e solidária. Pelo menos assim vivo meu projeto como performer.


Referências consultadas:

ARANTES, Priscila. Rede, arte e sociedade: utopia ou distopias. In: Arte e Tecnologia: Modus Operandi Universal. Instituto de Arte da Universidade de Brasília. Brasília: UNB, 2012.

CABALLERO, Ileana Diéguez. Cenários Liminares – teatralidades, performances e política. Urbelândia: Editora EDUFU, 2011.

CASTRO, Eduardo Viveiros. O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno. Disponível em: https://www.ufmg.br/boletim/bol1618/2.shtml  Acesso em: 18 de Maio de 2015.

COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva- USP, 2002.

FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. In: Sala Preta: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, ECA-USP, São Paulo, n.08, 2008.

JACQUES, Paola Berenstein. Apologia da Deriva – escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

LONGONI, Ana. La politicidad de lo intimo. Homenaje a Tosco. In: Teatro al Sur. Revista Latinoamericana. N.19, edición especial V, Buenos Aires, Argentina, 2001.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do Sensível. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005.

RIBEIRO, Isaque. A Performance Plebe do Crediário: Autobiografia Financeira em Tempos de Crise Econômica. In: Fronteiras e alteridade: olhares sobre as artes na contemporaneidade. Org: Maurilio Andrade Rocha, José Afonso Medeiros Souza. Belém: Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA, 2014.

Um comentário:

Matheus Silva disse...

"o performer agiria como uma presença desestabilizadora em seu meio, desnaturalizando o óbvio." Muito bom isso, querido! Como nos lixar, escavar, raspar aquilo que transformamos em óbvio em nós mesmos? Como viver essa instabilidade toda e ainda sim resistir? Viver é um risco, é preciso arriscar!