segunda rodada do jogo de dados
casa sorteada: vila oeste
propositor: clóvis domingos
ação: escrever um manifesto pessoal sem saber, a
princípio, o motivo. depois, ler para as pessoas na rua/metrô, aproximar-se delas. uma
provocação: sem representar.
"um manifesto pessoal e não há o que falar.
deixo a mão escrever o fluxo de gruta, o fluxo dos nossos corpos. opa, esbarrou
alguma coisa aqui, intensidade de ondas sonoras que vêm da rua. sem pensar em
pensar já é o próprio pensamento. roberto carlos tá lá fora. pela vida! pelada.
pela ____________________________ porque bla la la la la la como é ter a
língua na mão. desenho de letra e de corpo. desenho em vermelho e faltam 2
minutos. 2 minutos é muito tempo... agora deve faltar 1 minuto e meio e escrevo
assim por extenso que é para proloooooooooooooooooongar a ____________ esqueci.
prolongar a ação do gesto no tempo e deixar de manifestar-me ou manifestar-me
assim. ok!"
cena 1: senhora no metrô
saio da gruta com meu manifesto em mãos.
putamedo. putatesão. vila oeste, nunca fui. aproximar-me das pessoas, falar com
elas. putaquepariu. será que consigo? entro no metrô e sento num banco disponível.
começo a observar meus colegas "mais experientes", como será que eles
vão fazer? reparo o caminho, os muros lá fora, as pessoas aqui dentro. de
repente, uma senhora entra e fica em pé. a senhora quer sentar? ela balançou a
cabeça que sim. olha, eu tô com dificuldade de ler esse papel, tem uma letra
estranha. a senhora me ajuda? ela pegou o papel e não leu uma palavra. começo a
ler pra ela, interpreto suas maneiras e receio incomodá-la. não entendi nada,
ela disse. deve ser por isso que está escrito com letra confusa, comentei.
parece letra de médico, concluiu. (letra de médico, escrita automática. alguns
médicos prescrevem automaticamente nossos corpos?).
cena 2: senhor na banca de dvds
chegamos na vila oeste mais ou menos às 16h30,
temos até as 17h por ali. a estação é cheia de corredores e passarelas que levam
a um lado e outro. achei bonito, diferente das outras em que já estive. difícil
escolher pra que lado ir, mas vou junto com a galera conhecida que tenho em
vista. saio na rua e vejo uma banca de dvds próxima a um ponto final de ônibus.
começo a ver os títulos. opa, aí não! é que eu tava mexendo na fileira de dvds
pornográficos e o dono da banca logo me proibiu. se eu ler uma coisa que eu
escrevi, você me deixa ver essa parte? ele só exitou e mesmo assim comecei a
ler. ele e o cara do lado, um motorista esperando a hora de seu ônibus partir,
fazem cara de estranhamento. o motorista sai, diz alguma coisa e eu continuo
falando com o moço da banca: opa! esbarrou alguma coisa aqui. intensidade de
ondas sonoras que vêm da rua. paro, olho mais fundo pra ele. dou um espaço de
tempo e continuo. ele não diz nada. pergunto se posso ver os filmes. ele exita
de novo e diz que sim. eu olho e digo que não gostei de nenhum, e que ele não
se preocupe porque sou maior de idade. - é que mulher é mais complicado, né..
cena 3: garota na calçada
saio em outra direção. sinto-me uma trabalhadora
do acaso e deixo ele brincar comigo. quero conhecer a vila oeste e os caminhos
vão me levando. penso em me aproximar de algumas pessoas e não tenho coragem.
observo uma casa pra alugar. quanto será o aluguel por aqui? é perto do
metrô... já na avenida amazonas, uma menina vem na direção oposta. ela tem mais
ou menos a minha idade e eu decido falar com ela. oi, tudo bem? pra onde você
tá indo? pra lá, encontrar uns amigos. posso ir com você? é que escrevi uma
coisa, quero ler e saber o que você acha, posso? pode. leio e ela diz que não
entendeu nada, coisa que seu rosto já dizia antes. fico sem graça e puxo outros
assuntos. ela me diz que não gosta de carnaval, que mora em salvador e não gosta
do pelourinho. ela resolve parar pra esperar. sento com ela um pouco,
conversamos e desconfio que já deu a hora de voltar. digo que vou pro metrô,
mais cedo, perguntara a ela onde era a estação. ela se levanta e vai comigo. eu
volto ao texto, digo que é louco porque às vezes nem eu entendo o que escrevi.
ela me diz que às vezes, ela sente umas coisas e vai lá e escreve também.
chegamos à esquina, ela me aponta o metrô e nos despedimos com um abraço.
cena 4: volta no metrô, dupla + menino + gente
entro na estação e o relógio me diz que já era
hora de estar na gruta. tenho vontade de ler pra mais gente, sento ao lado de
um moço e fico muda. uma moça senta ao meu lado. respiro fundo, tomo coragem e
ela pega seu celular. entro no metrô e resolvo sentar entre duas pessoas que
conversam. conversa vai conversa vem. isso é bom, parece que enche o estômago.
muito sal, né. intrometi. ela guardou o salgadinho na bolsa e eu perguntei se
ela era boa de letra, porque minha amiga me passou um papel e eu não conseguia
bem ler o que estava escrito, apesar de estar curiosa e tentando muito. ela
pegou o papel e logo concluiu: uma receita médica! depois de um tempo olhando:
roberto carlos... fora... mais um pouco e ela disse: é alguma doença nos ossos,
aqui tá dizendo ossos do corpo. mais um pouco e outras palavras desvendadas.
faltam 2 minutos. 2 minutos é muito tempo... ela percebeu que não era uma
receita médica: deve ser coisa de gente que estuda muito. quem estuda muito
começa a falar coisa sem sentido, não é bom não, eu penso assim. eles descem na
estação central.
mais um tempo e peço a outro menino, bem jovem.
ele tenta ler, fica um pouco bravo porque não consegue e nesse momento há mais
duas pessoas pescoçando o papel na mão dele, curiosas, tentando entender a
letra. ele lê: prolongar a ação do gesto no tempo e deixar de manifestar-me ou
manifestar-me assim. ok! os olhos, dele e dos pescoçudos, riem de leve e se
suspendem no ar. o horto chegou. saio e faço com o corpo que tento ler. penso
se isso seria representar e, ao mesmo tempo, não enxergo texto no papel, mas um
emaranhado de letras que não se fixam em meus olhos.
pedir a alguém para ler, criar uma mentira para
aproximação, isso seria representar? representar, no caso, seria servir-se de
uma maneira talvez já capturada, banal, cotidiana, de aproximar-se de outras
pessoas? e se essa mentira serve de apoio a novas conexões do meu corpo, faz
com que ele habite novos espaços de relação, me desloca um milímetro que seja
do que é do hábito, represento? qual tempo encadeia esses momentos que,
carinhosamente, chamo de cenas? "o desejo faz correr, flui e corta".
o corte é matéria do próprio fluxo. a água, por exemplo, ela flui, por
natureza. se parada, dá dengue, algo se produz, mesmo numa suposta inércia. ou
uma correnteza forte, uma queda bruta que desemboca num riacho estreito e
sereno. não há intensidade especial, há disponibilidade para lidar com os
esbarramentos dos corpos e deixar-se levar por eles. ou não. como, onde,
quando? não há fórmulas. intensidade espacial, corpos são espaços rodeados por
espaços, respirando espaços. um livro diz que o cinza é a cor sem personalidade
porque mescla o preto e o branco. corpos performam corpos.
representar. como um ator que repete
automaticamente sempre o mesmo texto, os mesmos trejeitos, no mesmo cenário? ou
atuar, no sentido de estar em atividade contínua de invenção? a possibilidade
de ficcionalizar o cotidiano está relacionada à produção de diferença, de modos
outros de experienciar o próprio cotidiano, à invenção de possibilidades
de convívio e aproximação entre os corpos - das pessoas, objetos, animais,
instituições, tecnologias, natureza, etc - diferentes daqueles traçados pela Família, pelo
Estado, pelos Médicos, pelo Mercado, pela Mídia, pela Moda, pelo Amor, pelas
Imagens, pelo Ego, pela Sexualidade, pela Pornografia, pela Farmácia... propor
invenções. o que não quer dizer a negação de tudo o que já existe, mas escolher
os agenciamentos, os conjuntos que nos convém, porque assim desejamos.
inventar, coletivamente, subjetividades desviantes. para beatriz preciado,
identificações como Homem/Mulher, Homo/Heterossexual, Trans/Intersexual,
Masculino/Feminino, são ficções políticas vivas e encarnadas: "é possível
que estejamos numa situação em que devamos, coletivamente, nos rebelar contra essas
ficções políticas que nos constituem. desidentificarmo-nos politicamente delas
e imaginar coletivamente outras ficções políticas que não produzam violência,
que não produzam sistematicamente formas de opressão e formas de
exclusão."
acaso como potencializador do pensamentocorpo.
necessidade de ativar uma lógica do agir que disponibiliza o corpo a lidar com
o instante já, sacar o presente ao invés de tentar entendê-lo. desentupir e
entropir. pensamento sem imagem que é a própria possibilidade e dispositivo de
invenção. que possibilita o não saber, o desconhecer, imergir na escuridão e
por lá ficar como num exercício de descondicionar-se, já que a condição de ser
é conhecer )= penso, logo existo =( , já que a condição de ser muitas vezes
passa por ser humano.
cartografar a cidade, criptografar, se
necessário. mapa estrangeiro, clandestino, geometria espacial caosmótica,
psicotopologia: "em lugares desconhecidos posso ser outra e encontrar
outra cidade", diz clarissa campolina, em seu filme notas flanantes,
que tanto inspirou a proposição do jogo de dados. criar redes outras,
virtumanualmente, microencontros e comunidades breves. devir disperso, anterior
a fronteiras e sem pedir perdão. devir mistura, bagunçando limites, tirando
tudo do seu devido lugar. e sem pedir licença.
maninfesto-me,
por corpos ambíguos, amorais, livres da fixação
de territórios fronteiriços, dicotômicos, em prol da livre movimentação dos
fluxos e das arquiteturas. movimento ilimitado. como ter a língua nas mãos,
corpo do bricoleur, cidade bricolada. corpos des-montáveis, casas
portáteis, legos esquizofrênicos. sem hierarquia de lugares de prazer e de
lazer, de faculdades do pensamento (para proust, o sujeito é constituído de
faculdades de pensamento diversas: intelecto, sentimento, sensação, lógica,
memória, matemática, etc. e aí, há um tal pensamento puro que possibilita o
esquecimento da morte e a imortalidade da alma, e que não pertence ao sujeito,
pertence à arte). não são corpos neutros ou informes, são corpos que assumem a
forma que querem, quando querem e porque querem. e sem pedir licença! corpo
maleável, plasticamente moldável, espacialmente deslocável. descolável. corpo
dançarino, caça com os ouvidos e tem ouvidos nos pés. se conecta a redes
virtuais e à corrente elétrica. corpo feito de carne quente e espírito livre.
de plástico e motor, osso e ferro, corações e pontes de safena. corpocidade.
multiplanejada. fora dos contornos.
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