Para Cadeiras, neste dia, optamos em trabalhar com leituras relacionadas diretamente ao nosso momento político, leituras para um "levante". Utilizamos poemas da antologia de poetas neo-barrocos, Vinagre, obras de Hakim Bey, Artaud e Nietzsche, além de notas da Assembléia à população de BH. Abaixo, foto-montagem (fotos de Wagner Alves de Souza) da ação, com alguns dos textos lidos nesse dia.
Nota da Assembleia Popular Horizontal acerca dos recessos de serviços prestados pela Câmara
A RRUA
absurdo
abmudo
abism'undo
tem hora que o silêncio é cheio de gritos.
tem hora que o grito maior é o silêncio.
é que a rua agora
tem perna
tem punho
silencia com relâmpago e trovão.
troveja
apavora
e a rua chora
e não é por vintém.
pode ser tristeza
pode ser horror
pode ser pimenta
pode ser ciência
com a ciência de que tudo é dor.
a rua chora,
mas oferece flor.
o muro para,
mas o mundo cai.
o mudo cai:
a rua dá seu grito
− de guerra!,
não , não é.
o grito da rua
só é de guerra quando a guerra
é o maior grito de paz.
Danielle Takase (Vinagre)
Dito isso, pode-se começar a extrair uma ideia da cultura, uma ideia que é antes de tudo um protesto. Protesto contra o estreitamento insensato que se impõe à ideia da cultura ao se reduzi-la a uma espécie de inconcebível Panteão - o que resulta numa idolatria da cultura, assim como as religiões idólatras põem os deuses em seus Panteões.
Protesto contra a ideia separada que se faz da cultura, como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida; e como se a verdadeira cultura não fosse um meio refinado de compreender e de exercer a vida. Pode-se queimar a biblioteca de Alexandria. Acima e além dos papiros, existem forças: a faculdade de reencontrá-las nos será tirada por algum tempo, mas não se suprimirá a energia delas. (O Teatro e seu Duplo: Artaud)
No Oriente, às vezes, os poetas são presos - uma espécie de elogio, já que sugere que o autor fez algo tão real quanto um roubo, um estupro ou uma revolução. Aqui, os poetas podem publicar qualquer coisa que quiserem - o que em sim mesmo é uma espécie de punição, uma prisão sem paredes, sem eco, sem existência palpável - reino de sombras do mundo impresso, ou do pensamento abstrato - um mundo sem risco ou eros.
A poesia está morta novamente - e mesmo que a múmia do seu cadáver possua algumas de suas propriedades medicinais, a auto-ressurreição não é uma delas.
Se os legisladores se recusam a considerar poemas como crimes, então alguém precisa cometer os crimes que funcionem como poesia, ou textos que possuam a ressonância do terrorismo. Reconectar a poesia ao corpo a qualquer preço. Não crimes contra o corpo, mas contra Ideias (e Ideias-dentro-das-coisas) que sejam letais e asfixiantes. Não libertinagem estúpidas mas crimes exemplares, estéticos, crimes por amor.
(CAOS - terrorismo poético: Hakim Bey).
Se a História É "Tempo", como declara ser, então um levante é um momento que surge acima e além do Tempo, viola a "lei" da História. Se o Estado É História, como declara ser, então o levante é o momento proibido, uma imperdoável negação da dialética como dançar sobre um poste e escapar por uma fresta, uma manobra xamanística realizada num "ângulo impossível" em relação ao universo. A História diz que uma Revolução conquista "permanência", ou pelo menos alguma duração, enquanto o levante é "temporário". Nesse sentido, um levante é uma "experiência de pico" se comparada ao padrão "normal" de consciência e experiência. Como os festivais, os levantes não podem acontecer todos os dias - ou não seriam "extraordinários". Mas tais momentos de intensidade moldam e dão sentido a toda uma vida. O xamã retorna - uma pessoa não pode Ficar no telhado para sempre - mas algo mudou, trocas e integrações ocorreram - foi feita uma diferença. (TAZ: Hakim Bey).
COMEÇO DO MUNDO
O que pode um corpo
morto que se
descobre vivo?
Como se dobra
o sufoco? Como
se alça o asfalto?
Tudo está à flor
da pele e
subterrâneo.
Rua, começo do mundo.
O que pode um corpo?
O que pode um povo?
Nenhuma tropa
de choque esmaga
a resposta que somos.
Eduardo Sterzi (Vinagre)
LEMBRETE
Havia um homem antes da farda:
depois, difícil dizer
visto deste ângulo
a vista turva de gás
confunde a espingarda às mãos, braços, corpo cabeça.
Havia um homem antes da farda:
depois, difícil
o amor à ordem,
ainda que caduque e obrigue
a esquecer como basta
o menor dos impulsos para pedra, faca, estilhaço
rasgar-lhe a garganta.
Havia um homem antes da farda:
depois,
caos, um nada,
anterior talvez à farda
à espera que, de ordem, uma palavra
o preencha,
havia um homem ––
esse verso impossível de lembrar,
se a hora não é de poemas, falhando a voz,
o coturno abafando a garganta, ódio
trêmulo na fumaça dos detritos.
Adriano Scandolara (Vinagre)
Um comentário:
Nina, que linda essa postagem! Gostei muito das imagens e textos...."rua: começo do mundo"... deve ter sido uma experiência maravilhosa a de vocês! Que bom estarmos nas ruas nesse momento de levante!!! bjos, clóvis.
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