Aqui Performamos com os Mortos
“Em Ouro Preto, redolente,
vaga um remoto estar - presente”.
Carlos Drummond de Andrade
Tudo é intervenção!
O Obscena propôs uma série de
intervenções cênico-performáticas como parte da programação do
Simpósio Internacional Corpolítico, ocorrido em Ouro Preto entre 11
e 15 de Março de 2013.
Simultaneamente aconteceram cinco
ações poético-urbanas: “Salve Padilha, cheia de Graça” (que
começou na Ponte Marília de Dirceu e terminou na Igreja do
Rosário); “Espaço Disponível: Anuncie Aqui” (que ocupou a
Feira de Artesanato perto da Igreja de São Francisco de Assis e
vários lugares do centro da cidade); “Infravermelho” (também
realizada na Ponte Marília de Dirceu) e “O Espaço do Silêncio”
(que juntamente com “O Suicidado”), que se instalou na Praça
Tiradentes.
O pesquisador e performer Matheus
Silva afirmou que criamos um “mar vermelho” que invadiu a cidade
barroca. Sim, nossas presenças afetaram o cotidiano de Ouro Preto.
Mas também acredito que a cidade performou. Cidade misteriosa, de
pura teatralidade, misto de religião e espetáculo, paisagem
habitada por moradores, turistas, estudantes, heróis e espíritos,
espaço vertiginoso no qual o passado e a História respiram juntos.
Nas palavras de Alexander Freitas
(2009:146): “o espaço arquitetônico de Ouro Preto,
metaforicamente, como a maré cheia, preside uma invasão – uma
imposição – da imagética setenticista ao presente”. Uma forte
intervenção urbana.
E penso que nossas ações, no
presente, de alguma forma, atualizaram o passado. Foram invadidas por
fatos históricos e pelo imaginário coletivo existente em Ouro
Preto. Os espaços interviram sobre nossos trabalhos artísticos numa
tessitura de tramas da memória. As igrejas e o som dos sinos, o
silêncio dos cemitérios, as ladeiras e seus candelabros, a arte
sacra, tudo é intervenção.
Fiquei pensando: o que seria
performar num espaço teatralizado que grita suas cores e formas? Que
espetaculariza sua História? Lugar que cotidianamente acontece uma
performance dos moradores e personagens de rua? Acredito que seja
possível dialogar com esses espaços e suas simbologias. E mais:
praticá-los de forma liminar e fronteiriça. Duplicar seus usos e
sentidos. Nossas ações e manifestações cênicas “transbordam
as taxonomias e configuram-se como corpos mestiços a partir dos
entrecruzamentos e hibridações entre os dispositivos das artes
cênicas e visuais” (DIÉGUEZ, 2011:51), elementos preponderantes
na cultura barroca. Corpos políticos por entrecruzarem tempos e
espaços. Abordarei tal aspecto no tópico a seguir.
Espaços Entrecruzados:
ATUALIZE AQUI
A cruz é a síntese de dois
espaços de poder da arquitetura barroca: a igreja e os cemitérios
(FREITAS, 2009). A cruz também é o encontro de duas linhas
temporais: de um momento que segue seu fluxo no instante se deparando
com um momento já vivido. Morte e vida. Acontecimento e acontecido.
Nesse “entre-lugar”, nós obscênicos, acontecemos.
Fotos de Luciane Trevisan
A Padilha de Erica Vilhena se
metamorfoseou numa espécie de santa, caminhando descalça como um
ato de fé e sacrifício, e depositando oferendas (terços, conchas e
pétalas de rosa) nas portas das igrejas que emprestam seus nomes em
homenagem às mártires católicas. Um corpo em PROCISSÃO. A cada
estação, cada parada, uma ação ritual. Uma Pomba-Gira recatada e
bem comportada desfilou pelas ruas de Ouro Preto e a sensação
verbalizada pela performer, era de estar sendo vigiada o tempo todo.
A iconografia barroca nos revelava que a cidade tem olhos. Muito
diferente de uma caminhada perigosa, feita por uma Padilha atrevida,
numa outra experimentação ocorrida no baixo centro de Belo
Horizonte, nas ladeiras ouro-pretanas sentimos “pulular os
olhos-da-cidade, que aqui, são explicitamente metáforas dos
olhos-de-Deus” (FREITAS, 2009: 200).
Santa Efigênia, Nossa Senhora do
Rosário, Nossa Senhora do Pilar ou Marília de Dirceu, entre outras
figuras femininas, se atualizaram no corpo peregrino da performer.
Inclusive, Erica distribuiu suspiros na conhecida “Ponte dos
Suspiros”, no bairro Antônio Dias, local no qual se conta que
Marília de Dirceu se encontrava com seu amado Tomás Antônio
Gonzaga. Nessa gestualidade performática cruza-se uma composição
corporal, espacial e temporal. Reencontro de arquiteturas.
Presentificação de um tempo que ainda dura.
Da mesma forma que a questão do
suicídio e extermínio dos nossos índios guaranis kaiowás (tratada
nos trabalhos “Espaço do Silêncio” e “O Suicidado”) voltou
a ser denunciada na Praça central, local no qual Tiradentes foi
assassinado. Nina Caetano e suas pequenas cruzes, quase uma santa
colocada num altar branco que aos poucos se mancha de vermelho.
Leandro Acácio, num esforço de resistência física e psicológica,
a sustentar um pedaço de tronco seco corporificando a imagem de um
crucificado. O silêncio que se converte em discurso. Leandro e seu
“corpo-estátua”. Ambos os trabalhos nos olham, criando quase um
constrangimento.
Além da possibilidade de se
erguer publicamente um monumento, ainda que temporário (em memória
da injustiça cometida contra os expatriados indígenas) sob outro
“palco” permanente, a praça. Na ocupação espacial desses dois
trabalhos, temos uma teatralidade e performatividade em estado de
permanente fricção, atravessadas por narrativas históricas (logo
ficcionais) e irrupções do real.
As imagens de uma amordaçada e
um enforcado, seus corpos quase imóveis e se torna impossível não
se lembrar da morte do famoso inconfidente Tiradentes. Corpos
rendidos. Re-ligação de personagens rebelados em tempos
diferenciados. Os turistas- espectadores que fotografavam aquele
acontecimento cênico registravam o espaço e seu duplo, a
sobreposição de tempos, fatos, atos e ventos.
Em “Infravermelho”, mais uma
mulher, agora cega, carregando maçãs do amor e tateando o corpo de
velhas pedras e muros da cidade. Marcelle Louzada, impossibilitada de
ver o que se passava e ao mesmo tempo se oferecendo como um corpo em
plena visualidade poética. Um quadro vivo de pintura impressionista.
Ela se arrastava, tropeçava, buscava pontos de apoio e também
parecia ser uma santa fugitiva de algum altar. Em outros momentos era
como ter a visão de um “corpo fantasma” como uma daquelas almas
perdidas que rondam o fabulário ouro-pretano. Os olhos tampados,
como que furados e vazados, me remetiam à ideia de um corpo
torturado.
Em “Espaço Disponível:
Anuncie Aqui” (com Matheus Silva, Joyce Malta, Lissandra Guimarães,
Flávia Fantini e Sabrina Andrade), a provocação ao comércio
local, às feiras, à herança dos exploradores. Nem tudo reluz e nem
tudo é ouro. Ainda haveria espaços possíveis em Ouro Preto para se
divulgar a venda de alguma coisa? O turismo alimenta a economia e
tudo é propaganda, disputa, indicação de hotel e restaurante; se
paga para se visitar as igrejas e museus. Até quando seduzidos e
viciados pela História?
Além da escolha nessa ação, do
corpo como suporte para pequenos textos compondo um cartaz. Também
uma possível alusão às placas das repúblicas estudantis anexadas
aos corpos dos universitários. Outra aproximação. Anuncie aqui:
seu poder, o peso da tradição, o machismo secular, sua
perversidade. Anuncie aqui: “Bixo”, lixo, nicho de corpos
domesticados. Anuncie aqui a humilhação e a violência, feito as
placas com os valores de compra dos negros africanos contrabandeados
para servirem de escravos para seus senhores europeus.
No conjunto desta
“aparição-presentação” artística tudo dialoga com esse
“mar vermelho”: sangue, dor, fé, luxo, ostentação,
sobrenatural, espaço e poder.
Uma vez alguém proclamou: “Aqui
em Ouro Preto andamos sobre os mortos”. Naquela tarde de
quinta-feira, 14 de Março, poderíamos dizer: Aqui performamos com
eles. Uma experiência fora do tempo. Eles reviveram através de
nossos trabalhos. Pois estão vivos nos espaços que escolhemos
ocupar.
Espaços em Branco
Caí numa armadilha? Estarei de
alguma forma historicizando uma vivência coletiva numa visão
pessoal do que fizemos? Tudo o que aqui está escrito já é passado.
Foi-se. É uma cruz. Tudo se afoga com aquele “mar vermelho”:
referências, identidades, calendários e contextos.
Que venha o desconhecido e o
imprevisível!
Agora desejo olhar para nossas
pesquisas como corpos com tatuagens de rena, efêmeras e livres para
novos lugares e encontros. Podendo ser bicho, gente, coisa, cor,
onda, linha, vôo, nada. Anúncios impossíveis.
Espaços em branco: PERFORME
AQUI!
Referências:
DIÉGUEZ, Ileana. Cenários
Liminares: teatralidades, performances e política. Tradução de
Luis Alberto Alonso e Angela Reis. Uberlândia: EDUFU, 2011.
FREITAS, Alexander. Imagens da
Memória Barroca de Ouro Preto: o espaço barroco como educador do
imaginário ouro-pretano. Doutorado. Faculdade de Educação. São
Paulo: USP, 2009. 308 p.
7 comentários:
Clóvis, parabéns! Que bela sua narrativa! Amei ler este texto, mais este seu! Bjoca.
Ei Viviane, que bom te ter me acompanhando na produção desses ensaios artísticos. Sempre bem vinda a comentar e partilhar. Como você, também amo as palavras escritas, ditas, cantadas, decantadas, ouvidas e expressas.
bjos do Clóvis.
Clóvis, querido,
Seu ensaio me deixa atônito e enche de poesia essa terça-feira! Quantos pensamentos vibrantes, potentes, apaixonados, que me fazem perceber as coisas de outros modos. É bela a forma como o texto amplia a ideia de intervenção, explodindo o conceito e tomando a cidade de Ouro Preto. Divino, maravilhoso reviver por suas palavras cheias de vida aqueles momentos luminosos que passamos juntos na ocasião do corpolítico. Sou atento a você. Gde beijo
L.
Clóvis, querido,
Seu ensaio me deixa atônito e enche de poesia essa terça-feira! Quantos pensamentos vibrantes, potentes, apaixonados, que me fazem perceber as coisas de outros modos. É bela a forma como o texto amplia a ideia de intervenção, explodindo o conceito e tomando a cidade de Ouro Preto. Divino, maravilhoso reviver por suas palavras cheias de vida aqueles momentos luminosos que passamos juntos na ocasião do corpolítico. Sou atento a você. Gde beijo
L.
Leandro querido, que bom ter seu retorno sobre esse ensaio, tão trabalhoso e prazeroso de escrever. Privilégio e alegria ter você atento a mim....mais desejo de produzir e escrever textos de nossas pesquisas.
bjos, clóvis.
ei, clovito! você, como sempre, enchendo de poesia e luminosidade nossas ações. e que lindo esse título, aqui performamos com os mortos, tenho pensado tanto nele em função dos guarani kaiowá. quase adotei como subtítulo do manifesto do silêncio. beijo
Ei Ninon, obrigado pelo retorno, tua leitura também ilumina meu pensar-fazer. Pode adotar o título da minha publicação no teu Manifesto do Silêncio. Uma coisa vai alimentando outra... Lá na Praça Tiradentes você trazendo a questão dos guarani kaiowá, você realmente performava com os mortos. um beijo.
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