agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

sábado, abril 25, 2009

Como se fabrica uma mulher?


Há, sem dúvida, em nossa sociedade (...) uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aí de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso: (...) é preciso:
(...) questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante.
(Foucault: A ordem do discurso)


Não é possível explicar, é necessário construir: desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você. Mulher, uma obra em construção.
Quem é a obra de quem? Os estereótipos se reproduzem. Mulheres. moças. meninas. É necessário destruir.
Destruir: verbo transitivo direto. desorganizar, transformar, desfazer. Permitir que a fenda se produza. Entre as margens. Entre as imagens. Transbordar.


Se o acontecimento não é da ordem do corpo e o discurso está para além do verbal, que texto (escritura) é este que se imprime no corpo da cidade?

Livre das determinações de um autor-deus, entregue ao fluxo dos espectadores/transeuntes, a escritura se instaura em meio ao fluxo dos corpos leitores, se instala na fenda entre meu olhar/escuta que capta e o ato de desenhar as palavras no corpo giz no chão. O texto não pertence mais a mim. O texto é o corpo da atriz dialogando comigo, seus olhares, quando ela vê/interage com a menina de rosa e seu jovem pai: uma família. Quando estaciona sob o cartaz de "compromisso marcado" e tira fotos com homem que passa: casal. Quando avança sobre as reentrâncias/volumes da Praça Sete: monumento.

O texto se instala no tapete tecido das imagens, páginas de revistas femininas. O texto objeto brinquedo de menina. O texto rosa. O texto bonecas em série. O texto escuta cruzamento dessas vozes.
Neste sábado, 25 de abril, algo aconteceu. Algo não coube aqui, entre o masculino e o feminino. Praça Sete. 11 horas da manhã. No centro nervoso da cidade, a fenda ferida em exposição.
Narrativas em fluxo de nossas ações. A mulher que passa e ri. Aquele que se indigna. O militar da polícia montada que conversa com as duas prostitutas de Divinópolis e aprecia a "vista". Creuza e Neuza que, sempre a serviço dos homens, fazem uma leitura instantânea: "elas odeiam homem. Sapatão". Aliás, aqui, as leituras se farão instantâneas. É preciso explicar. Entender. E continuar o caminho sem interrupções. Mas hoje provocamos uma ruptura. Uma fenda entre duas margens. Hoje, nós irrompemos. A mulher que se revolta com a falta de explicações cartazes. Aquele que me pergunta. O grupo de moças que procuram sinais de que seja protesto, teatro, filme, propaganda. Os corpos sem entendimento permanecem. O discurso se produz. Aqui sou leitora. E registro minhas impressões. Registro dessas passagens sobre a terra.

Tudo que não está em uma margem, precisa estar na outra. Encontrar sua explicação. Mulher. Puta. Esposa. Mãe.
Mulher batalhão. Mulher chuteira. Mulher gasolina. Denominações. Designações. O nome da coisa e a ordem do discurso. Uma mulher noiva passeia seu corpo objeto pelas ruas. Peito. Bunda. Vagina. Mulher jaca. Mulher filé. Mulher fruta. Samy, 18 aninhos. Loirinha e sapeca como você gosta. Barbies. Pollys. Princess. Prontas para o consumo imediato. Adoro beijar. É só lavar e usar novamente. Liberal e discreta. Funcional. Preparada. Turbinada. Sexo anal total. Como você gosta. Útil. Fútil. Dócil. Doce. Muda. Morta. como você gosta.
Diet. Light. Endermologia com arte. Jet bronze. Mamoplastia. Himenoplastia. O selinho atesta a qualidade de produto novo. Bonecas em série. O rosa. O rosa. O rosa.
Desenhos a giz no chão.
Mulheres brinquedos. De cama e mesa. Sobremesa. Melancia com novas cores e propriedades nutritivas. Apetitosa. Saborosa. Gostosa.
A gente pensa que é mulher e é só FÊMEA. Bichinho de estimação. Depilação. Epilação. Hidratação. Lipoaspiração mata. Aniquila.

Extermina. Extingue.
Bruna, 19 anos. Tiro na cabeça. Ex-namorado.
Ana Cláudia, 18 anos. 14 facadas. Ex-jogador, ex-companheiro.
Salete. 37 anos. Ana Carolina, 27. Júnia, 20. Amanda, 19. Carla. 14 anos.
Excomungadas. Estupradas. Espancadas. Enterradas. Como você gosta.
Uma mulher é feita de arestas, buracos. fendas. Garganta, veias, sangue. Voz. Uma mulher é feita de palavras. Silêncios.
Uma mulher não tem explicação.
Não é preciso colocar uma faixa. Nem odiar os homens. Não é preciso ser sapatão. Nem não ser. Não é preciso devorar. Não é preciso engolir.
Deixar a fenda escritura entre as duas margens, "o interstício do gozo". É preciso saltar sobre a margem e se deixar levar pelo volume das linguagens. Deixar fluir. Fruir.

"Vocês querem que ocorra alguma coisa e não ocorre nada. Pois o que ocorre à linguagem não ocorre ao discurso": o que "acorre", o que "se vai", produz-se no momento do jogo. (Em tempo, Barthes: O prazer do texto).

4 comentários:

Clóvis Domingos disse...

Nina, fui testemunha desta fenda que se abriu rasgando o corpo da cidade e provocando interrupções e reações. Foi uma intervenção muito forte , além das fronteiras estabelecidas e identificadas...Tinha uma agressividade muito grande e percebi que causou incômodos e questionamentos vários. O não-saber e a necessidade da experiência de cada um diante da exposição das bonecas se revelaram como potências de produção de subjetividades e o desafio de se criar uma "leitura" diante de um acontecimento que escapou à linguagem.

patricia mc quade disse...

oi nina,

lendo e acompanhando a proposta estética e política do grupo obscênica notei que há um diálogo muito legal com outro grupo - cassandras - talvez vcs já conheçam. mas se não, fica aqui a minha dica de leitura.

http://cassandras.multiply.com/

parabéns pelo registro do trabalho narrado neste post. quem sabe em um dia de sorte eu me depare com esse presente pelas ruas de bh?

bjs.

Nina Caetano disse...

olá, patrícia
obrigada pela dica!
faremos uma próxima no sábado, dia 16 de maio. praça sete, 11 horas
beijos

Moacir disse...

É. Apresentei o agrupamento para uma turma de estudantes de publicidade. Na ocasião, tratávamos da utilização da mulher como ferramenta de anúncios publicitários. Levei dois relatos escritos por mim e outro atual, escrito por Nina. É interessante notar como um olhar mais crítico pode deixar incômoda uma relação que já é explícita por natureza.
Usei termos como “mulher-rótulo”, “mulher-catálogo” e “mulher-slogan” no sentido de evidenciar a idéia da mulher como valor agregado ao produto. Para a publicidade, uma mulher interessa quando pode ser vendida, e diante da questão “Como se fabrica uma mulher?” outras considerações se manifestam: “Como se anuncia uma mulher?” “Como se vende uma mulher?”
Todas estas interrogações convergem para a noção de consumo, assim como para todo o processo de manufatura: fabricação e promoção do sentido que acompanha o objeto-mulher.
“A gente pensa que é mulher e é só fêmea” implica na redução característica à qual o marketing submete o bem material, serviço ou idéia que pretende comercializar. “Fêmea” torna-se, portanto, o valor agregado:

Mulher: divida uma com um amigo. Ou dois.

Com ou sem hífen a mulher está sempre acompanhada de uma qualidade que lhe confere uma condição ou instrução de uso. No embalo, mulherembalagem. Pouco importa se viva, se morta. Em capa de revista ou classificados. Há sempre um espaço. A gôndola. A cova.
O corpo feminino riscado no chão é a sombra do outdoor inscrita na paisagem urbana.

Quero desenvolver mais sobre estas relações. Aprofundá-las.

Saudades.

M.