1 - Você propôs um ato-processo ( pelo N3PS) no
início dos trabalhos práticos de invasão e ocupação da cidade no
PERFORMATITE. Recordo-me você dizendo: "é para inflar, inflar, inflar
até INFLAMAR os corpos. Aí se vai para a cidade como um abcesso
supurado". Como foi essa experienciação? O que ela inflamou depois?
Inflama
aqui, inflama agora. Inflama na minúcia de uma rede gigantesca, feita
de invisibilidades minoritárias, inflando corpos estranhos, mal
acabados, sem nome, sem rosto, sem definição/significação. Infla um
sentimento que resiste raro, de tão cansado de ser banalizado - "o que
significa amar alguém? (...) não há amor que não seja um exercício de
despersonalização" - voz desse filósofo que também não quer mais ouvir
seu nome... Uma experienciação, de fato, não uma experiência para ser
acumulada. O que vivemos, vivemos ainda, pois é nisso e disso que
vivemos. Não são lembranças de três dias, são acontecimentos de vida
inteira que na rua daquela histórica cidade, no extremo da sua
exterioridade, atualizam o êxtimo de nossos quartos íntimos. O que
sentimos, não sentimos sozinhos. Nossas questões são do mundo, é assim
que fazemos um mundo. Nossos desejos são da humanidade, é assim que
produzimos o humano, esse abcesso supurado.
2- Tuas imagens fotográficas são simplesmente arrebatadoras e
arrepiantes. Você performa fotografando. Qual a relação, para você,
entre fotografia e performance ou intervenção urbana? Para mim é um
trabalho além do registro da ação, vejo como um CORPO PERFORMÁTICO que
também provoca e altera a dinâmica das ações/invasões. Des-vela,
complica, borra as fronteiras.....quando me deparo com tuas imagens, as
ações performáticas se PRESENTIFICAM em meu corpo e desestabilizam minha
percepção. São corpos com linhas de força muito potentes.
O
que tu vês, Clóvis, implica num descomplicar o visto. Então,
desestabilizado do já visto, abre-se, diante dos teus olhos, o
desconhecido "si mesmo". Não há imagem de si mesma. Toda visão é uma
imagem que sim já registro de outrem. Fotografar, para mim, é performar a
presença insidiosa de uma ausência que transfigura. Quem nos olha,
afinal? Um corpo que se compõe extensivo à máquina, é uma máquina de
produção desejante, que ao registrar tantas imagens desvela a
multiplicidade de linhas informes dos corpos, enfim, sem imagem. Não sei
mais dizer da Fotografia e da Performance como lugares instituídos da
Arte. Não sei mais dizer da Arte, porque da Vida nada se diz quando, de
fato, ela acontece no extremo vivido, na superação do excesso,
intempestiva e gloriosa, silenciosa verdade-da-arte. Um olho nú, feito o
da câmera fotográfica, desnuda as imagens delas mesmas. A percepção,
enfim, alarga-se para além do "si". Ouço dentro um grito, enquanto vejo
fora a cidade e a cidade me vê: "Não há separação entre o observador e o
observado"! Essa voz grita sem identidade, retumbando o mundo inteiro
no ínfimo corpo inflamado.
O
que você me propõe aqui, Clóvis, com suas explosivas perguntas, é um
fazer sem limites onde não se separa mais o pensar da
ação/invenção/invasão de nossos pensamentos.
Corpo performático que provoca e altera nossas dinâmicas.
3-
Você sempre me emociona pela força do teu olhar/percepção sempre
poético e agudo sobre a arte e a vida. Trabalhar e conviver com você é
sempre um salto rumo ao desconhecido, inusitado e desestabilizador. Na
mesa de discussões do PERFORMATITE, você aproximou, de uma forma muito
bonita: AMOR E PERFORMANCE. Falou de uma necessária suspeita do ego,
quando num encontro (seja artístico ou não) com a Diferença. Encontro
de(nas) peles.
Busco um
trecho no teu livro (CORPOALÍNGUA: PERFORMANCE E ESQUIZOANÁLISE. Editora
CRV, 2011) que me é muito caro, na pagina 180: "Para além dos
fundamentos, os afundamentos da pele trazem à superfície o que se ousa
chamar pelo nome: o amor. Singularidade que se prolonga, multiplicidades
que englobam umas as outras". Multiplicidades obscênicas é o nome de
nosso projeto atual. Penso que multiplicidade é além da Diferença. Num
encontro performático acho que singularidades ( do artista e dos
transeuntes) se multiplicam e se misturam. O que você teria a dizer
sobre isso? Será que quando performamos e nos deparamos com os outros,
permitimos que "nasçam acácias em nosso peito febril'?
Tocar na pele é trocar de pele? A pele, o maior de
nossos órgãos, contorna mesmo o quê? Ora, o corpo que carrego! E o
corpo que carrego, o que pode, o que pode, realmente, este corpo? O
corpo que nos singulariza nos identifica uma imagem? O que representa?
Que ideias carrega? O ego, o grande "formador de identidades",
reprodutor de imagens, forjado a ferro e fogo como um fundamento, como
dele não suspeitar quando, do afundamento das peles, para além do rosto,
vem à superfície o que da/na pele desliza, escorre, escapa, foge ao
controle? Eu te toco quando te abraço a cada encontro e nesta
discernibilidade intensa, apreendo teus múltiplos e, tu, os meus.
Amo-te, e só aí te chamo pelo nome. E teu nome e meu nome já não mais
nos nomeia, nem o "eu" nem o "tu" encontram seus territórios, pois assim
juntos, sem que estejamos misturados, pomo-nos embriagados, imbricados,
nascidos acácias à luz de um desconhecido, uma imanência impura que, no
"entre" do nós, no peito febril deste obsceno encontro, a singularidade
acontece. É possível. É real. Que estupendo evento/performance são os
encontros quando da vida somos a arte! Pergunto-te, querido meu, o que
será a multiplicidade além da Diferença? Aprendo, observando e
intensificando a percepção para muitos lados, que a "pura diferença", só
é possível quando a diferença não está mais subordinada ao idêntico. A
diferença que aponta o diferente porque não é idêntico, não é diferença
pura. O idêntico, o igual, faz o "um". No entanto, quando o "um" é
extraído de uma multiplicidade (n - 1), são singularidades que se
multiplicam como pura diferença, o que não significa que haja aí
mistura, o que daria no mesmo, um idêntico. Quando performamos, quem são
os "outros"? Com o que nos deparamos, com o mundo, com o fora?
Provocamos multiplicidades que nos extraem, fogem, escapam à identidade
da cena cotidiana, diferenças puras obscenizantes, no entanto, deixamos
aí de ser mundo? Somos "os outros", essa humanidade estrangeira. É no
mais absoluto fora que achamos, enfim, o mais imperceptível dentro. O
que fazemos, fazemos. Algo acontece, desejamos isto, estamos à altura
disto. Voos ao gosto de cada gesto. Entender, fundamentar, estruturar,
intelectualizar, para acumular, assegurar, fixar, controlar pode, sim,
ser a maior de nossas desgraças... Não há estrutura de ego que escape
disto. Neste caso, sim, "falar de amor é em si um gozo", como gosta de
dizer o Lacan, escrachando o amor que só sabe amar o que é idêntico a
si, mesmo quando na diferença.
Amor e Performance estão juntos quando, sim, são afirmação da vida. Esse encontro com a bendita alegria! Singular, desconhecida, sem lembrança.
Amo o que em ti me desaparece!
Um comentário:
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