agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

sábado, junho 30, 2012

Ressonâncias do Performatite - três perguntas para Clarissa Alcantara


1 - Você propôs um ato-processo ( pelo N3PS) no início dos trabalhos práticos de invasão e ocupação da cidade no PERFORMATITE. Recordo-me você dizendo: "é para inflar, inflar, inflar até INFLAMAR os corpos. Aí se vai para a cidade como um abcesso supurado". Como foi essa experienciação? O que ela inflamou depois?

Inflama aqui, inflama agora. Inflama na minúcia de uma rede gigantesca, feita de invisibilidades minoritárias, inflando corpos estranhos, mal acabados, sem nome, sem rosto, sem definição/significação. Infla um sentimento que resiste raro, de tão cansado de ser banalizado - "o que significa amar alguém? (...) não há amor que não seja um exercício de despersonalização" - voz desse filósofo que também não quer mais ouvir seu nome... Uma experienciação, de fato, não uma experiência para ser acumulada. O que vivemos, vivemos ainda, pois é nisso e disso que vivemos. Não são lembranças de três dias, são acontecimentos de vida inteira que na rua daquela histórica cidade, no extremo da sua exterioridade, atualizam o êxtimo de nossos quartos íntimos. O que sentimos, não sentimos sozinhos. Nossas questões são do mundo, é assim que fazemos um mundo. Nossos desejos são da humanidade, é assim que produzimos o humano, esse abcesso supurado.


2- Tuas imagens fotográficas são simplesmente arrebatadoras e arrepiantes. Você performa fotografando. Qual a relação, para você, entre fotografia e performance ou intervenção urbana? Para mim é um trabalho além do registro da ação, vejo como um CORPO PERFORMÁTICO que também provoca e altera a dinâmica das ações/invasões. Des-vela, complica, borra as fronteiras.....quando me deparo com tuas imagens, as ações performáticas se PRESENTIFICAM em meu corpo e desestabilizam minha percepção. São corpos com linhas de força muito potentes.

O que tu vês, Clóvis, implica num descomplicar o visto. Então, desestabilizado do já visto, abre-se, diante dos teus olhos, o desconhecido "si mesmo". Não há imagem de si mesma. Toda visão é uma imagem que sim já registro de outrem. Fotografar, para mim, é performar a presença insidiosa de uma ausência que transfigura. Quem nos olha, afinal? Um corpo que se compõe extensivo à máquina, é uma máquina de produção desejante, que ao registrar tantas imagens desvela a multiplicidade de linhas informes dos corpos, enfim, sem imagem. Não sei mais dizer da Fotografia e da Performance como lugares instituídos da Arte. Não sei mais dizer da Arte, porque da Vida nada se diz quando, de fato, ela acontece no extremo vivido, na superação do excesso, intempestiva e gloriosa,  silenciosa verdade-da-arte. Um olho nú, feito o da câmera fotográfica, desnuda as imagens delas mesmas. A percepção, enfim, alarga-se para além do "si". Ouço dentro um grito, enquanto vejo fora a cidade e a cidade me vê: "Não há separação entre o observador e o observado"! Essa voz grita sem identidade, retumbando o mundo inteiro no ínfimo corpo inflamado. 
O que você me propõe aqui, Clóvis, com suas explosivas perguntas, é um fazer sem limites onde não se separa mais o pensar da ação/invenção/invasão de nossos pensamentos. 
Corpo performático que provoca e altera nossas dinâmicas. 

3- Você sempre me emociona pela força do teu olhar/percepção sempre poético e agudo sobre a arte e a vida. Trabalhar e conviver com você é sempre um salto rumo ao desconhecido, inusitado e desestabilizador. Na mesa de discussões do PERFORMATITE, você aproximou, de uma forma muito bonita: AMOR E PERFORMANCE. Falou de uma necessária suspeita do ego, quando num encontro (seja artístico ou não) com a Diferença. Encontro de(nas) peles.

Busco um trecho no teu livro (CORPOALÍNGUA: PERFORMANCE E ESQUIZOANÁLISE. Editora CRV, 2011) que me é muito caro, na pagina 180: "Para além dos fundamentos, os afundamentos da pele trazem à superfície o que se ousa chamar pelo nome: o amor. Singularidade que se prolonga, multiplicidades que englobam umas as outras". Multiplicidades obscênicas é o nome de nosso projeto atual. Penso que multiplicidade é além da Diferença. Num encontro performático acho que singularidades ( do artista e dos transeuntes) se multiplicam  e se misturam. O que você teria a dizer sobre isso? Será que quando performamos e nos deparamos com os outros, permitimos que "nasçam acácias em nosso peito febril'?

Tocar na pele é trocar de pele? A pele, o maior de nossos órgãos, contorna mesmo o quê? Ora, o corpo que carrego! E o corpo que carrego, o que pode, o que pode, realmente, este corpo? O corpo que nos singulariza nos identifica uma imagem? O que representa? Que ideias carrega? O ego, o grande "formador de identidades", reprodutor de imagens, forjado a ferro e fogo como um fundamento, como dele não suspeitar quando, do afundamento das peles, para além do rosto, vem à superfície o que da/na pele desliza, escorre, escapa, foge ao controle? Eu te toco quando te abraço a cada encontro e nesta discernibilidade intensa, apreendo teus múltiplos e, tu, os meus. Amo-te, e só aí te chamo pelo nome. E teu nome e meu nome já não mais nos nomeia, nem o "eu" nem o "tu" encontram seus territórios, pois assim juntos, sem que estejamos misturados, pomo-nos embriagados, imbricados, nascidos acácias à luz de um desconhecido, uma imanência impura que, no "entre" do nós, no peito febril deste obsceno encontro, a singularidade acontece. É possível. É real. Que estupendo evento/performance são os encontros quando da vida somos a arte! Pergunto-te, querido meu, o que será a multiplicidade além da Diferença? Aprendo, observando e intensificando a percepção para muitos lados, que a "pura diferença", só é possível quando a diferença não está mais subordinada ao idêntico. A diferença que aponta o diferente porque não é idêntico, não é diferença pura. O idêntico, o igual, faz o "um". No entanto, quando o "um" é extraído de uma multiplicidade (n - 1), são singularidades que se multiplicam como pura diferença, o que não significa que haja aí mistura, o que daria no mesmo, um idêntico. Quando performamos, quem são os "outros"? Com o que nos deparamos, com o mundo, com o fora? Provocamos multiplicidades que nos extraem, fogem, escapam à identidade da cena cotidiana, diferenças puras obscenizantes, no entanto, deixamos aí de ser mundo? Somos "os outros", essa humanidade estrangeira. É no mais absoluto fora que achamos, enfim, o mais imperceptível dentro. O que fazemos, fazemos. Algo acontece, desejamos isto, estamos à altura disto. Voos ao gosto de cada gesto.  Entender, fundamentar, estruturar, intelectualizar, para acumular, assegurar, fixar, controlar pode, sim, ser a maior de nossas desgraças... Não há estrutura de ego que escape disto. Neste caso, sim, "falar de amor é em si um gozo", como gosta de dizer o Lacan, escrachando o amor que só sabe amar o que é idêntico a si, mesmo quando na diferença. 
Amor e Performance estão juntos quando, sim, são afirmação da vida. Esse encontro com a bendita alegria!  Singular, desconhecida, sem lembrança.
Amo o que em ti me desaparece!

domingo, junho 24, 2012

Cadeiras


foto de Marizabel Pacheco


Ontem foi o primeiro dia dos Programas Obscênicos e realizamos (finalmente) a proposta de Fred Caiafa para as práticas performativas que, inseridas no contexto de estudo teórico que estamos realizando a partir da dissertação de mestrado de nosso companheiro Leandro Acácio (intitulada "O Teatro Performativo: a construção de um operador conceitual"), investigam a noção de performatividade. 
Originalmente, a proposta de Fred consistia em uma experimentação do corpo no ambiente urbano a partir da relação com uma cadeira. Após alguns de nós realizarem a ação no Circuito Performatite, em Ouro Preto, incorporamos alguns elementos explorados nessa ocasião: o bloco de cor e o livro. Cada performer deveria, então, definir uma cor para cadeira/roupas/objetos e escolher um livro que quisesse compartilhar com os habitantes da cidade. Decidimos, também, um trajeto. Ou melhor, um ponto de chegada: a Praça da Rodoviária, às 17 horas.
Como em Ouro Preto eu já havia trabalhado com o vermelho, decidi manter essa cor. Sem a cadeira que eu havia usado anteriormente, resolvi comprar uma de madeira e pintá-la totalmente. Meus objetos, além da cadeira, eram uma bolsa - na qual eu carregava meu livro - e um guarda-chuva que, como a roupa e o sapato, eram também vermelhos. Apaixonada como estou por "Um teto todo seu", de Virginia Woolf, decidi que iria compartilhá-lo. 
De início, achei difícil incorporar o livro à minha ação com a cadeira, pois a leitura me soava artificial. Depois, comecei a jogar com o texto. Um trecho da obra se apresentou mais fluido: a passagem em que ela "inventa" uma irmã para Shakespeare, afim de tratar da condição de vida da mulher naquela época e da impossibilidade de uma delas se tornar uma escritora. 
Como a cadeira ainda estava úmida, ao longo da ação minhas mãos foram se sujando de vermelho, pareciam cheias de sangue. Esse "sangue" também impregnava o livro e meu vestido. Logo a  cadeira começou a se grudar em mim, em minha roupa, nas minhas mãos, numa simbiose do corpo com o objeto.
De todos os momentos da intervenção, um me tocou especialmente. Ao chegar à Praça da Rodoviária, circulei por ela um tempo e decidi subir ao centro da praça, local especialmente sujo e cheirando a urina. Em função do mau-cheiro, acabei me afastando para um dos cantos, onde vi uma mulher. Ao vê-la, um impulso me levou a dela me aproximar. Sentei-me na cadeira e comecei a ler para ela. Ela se aproximou, para ouvir melhor e logo seus olhos encheram-se de lágrimas. Ela me disse: "essa aí é minha vida". E logo Shirley (era seu nome) começou a me contar sua história. As dificuldades, humilhações, restrições que uma mulher da rua sofre. Conversamos um bom tempo. Era agora a minha vez de escutá-la. Foi uma troca profunda, sincera, entre duas desconhecidas. Vislumbro nessa ação muita potência. E devo dizer: estou apaixonada.

terça-feira, junho 19, 2012

domingo, junho 17, 2012

Eu vinha caminhando a pé

"Eu vinha caminhando a pé
e me deparei
com uma mulher:
pétala
padilha
partilha
pata
pede
amor...
 
 
 
pétalas
pelas
passarelas
becos
bares
banhos
cheiros
quartos,
quanto
vale 
pede
fede
o teu corpo?
 
salve
os gemidos
de vida
prazer
pétalaspérfidas
perfume
perfumam
performance
macumba
nômade
nome
vermelho
espelho
de uma cidade
erótica
erosiva...
 
quanto
fede
quanto
mede
teu
pau
de flores?
Entra
em meus buracos
junta meus cacos
 
beija minhas dores.
 
 
 
Desenha
Desdenha
cidade prenha
de corpos famintos
bucetas
pintos
patas
piranhas
poros
putas
labutas
de corpos
domesticados
que buscam
nas ruas
as vivências
nuas
dessas nossas vidas
tão cruas!!!
 
Arreda, homem
que lá vem, mulher!
Mulher Maravilha!
Salve Padilha
que
passa
desfila
brilha,
pétalas por nós..
arrasta teu véu
sob o céu
dessa cidade tesuda
que te procura
te beija
te bate
e pede cura.
 
 
 
 
somos estômago e sexo
na cidade
na guaicurus
nesse porto
nesse cais
convexo
tantos, mais
tantos ais
é bom demais
dói demais...
 
perdi o reflexo!"
 
As imagens são de Clarissa Alcantara

sábado, junho 16, 2012

Programas Obscênicos

Clique na imagem abaixo, para ver a programação.



Salve Padilha Cheia de Graças!

Aos 8 meses de gestação saio pelas ruas, mais especificamente ao longo da Guaicurus/BH, para derramar pétalas nas portas dos 'sobe e desce' da nossa cidade que NÃO AMO RADICALMENTE e assim homenagear as Profissionais do Sexo. 
Esta ação me foi proposta por Clóvis Domingos ano passado, quando a fizemos coincidentemente no dia 02/06 data de comemoração internacional desta classe trabalhadora. Ação que de certa foram fora engolida pelo Trio Elétrico da CUT que lá estava a prestigiar as 'meninas' com a fala de um pastor que muito sabiamente fazia um histórico bíblico poético da importância destas mulheres para nosso sociedade. De Maria de Magdala à Gabriela Leite a luta continua por uma vida digna, com direitos trabalhísticos e de saúde.
Como desta vez era um dia comum tive o privilégio que ser seguida por algumas e vê-las pelas janelas em revoadas, curiosas daquilo que ocorria ali embaixo: _é macumba? _é teatro? _tá amarrado em nome de jesus!
Já no início, na esquina da Guaicurus com Rio de Janeiro, fui saudada por uma moradora de rua que chorosa perguntava à Deus 'por que?' e me pedia a benção, derramei sobre ela uma chuva de pétalas e ela girou girou... e, por fim me abraçou e não sei bem quem abençoou a quem, só sei que dali em diante eu estava certa que a rua se abria para mim! Como disse já há oito meses eu não trabalhava junto ao Obscena, muito devido à gravidez, sim, dizem que gestação não é doença e realmente não é, mas que muda a vida da gente, MUDA! Minha energia se converteu toda para meu útero e ao longo dos últimos meses minha única ação foi me concentrar nesta vida que se formava dentro de mim, nas reverberações desta mulher sobre mim e de mim sobre ela. Gestar é algo magnífico, é algo grandioso! Senti-me até então como num casulo, a tecer os fios desta trama, desta nova vida nova e assim tecendo também uma nova Erica, mais ciente de si e do próximo, mais humana, mais de carne e osso! E, ao me deparar com esta mulher na esquina a me receber e a abrir a rua para mim senti-me novamente uma atuante em minha cidade, senti-me novamente capaz de intervir nos fluxos desta louca urbanidade e assim gerar interrupções poéticas pelo concreto afora.
Ano passado a roupa para Padilha foi preta e vermelha e este ano alteração para branca e vermelha e desta forma também alterei minha energia durante a ação, estive mais leve, mais suave desta vez! As pétalas também foram sortidas em suas cores, isso trouxe certamente mais sutileza à nossa presença na rua. Bom, grande parte das mulheres que ali trabalham são mães e nesse fluxo eu me conectei com elas, de mulher para mulher, todas sabemos/sentimos bem o que é isso!
Bom, subimos a Guaicurus derramando as pétalas nas portas dos prostíbulos e a corrente de homens a entrar e sair não se altera, fluxos e fluxos deste comércio que torna a cidade atrativa para as profissionais que assim como Gabriela Leite constatou nos idos anos 70 "Belo Horizonte é ótima para se ganhar dinheiro, os programas são curtos, no máximo 10 min. e, a demanda é grande". Assim também confirmou uma profissional que me seguiu durante a ação e que no final se aproximou para conversar, ela veio do RJ pois soube que BH era rentável. Ela questionou o porquê da minha ação uma vez que não sou puta... eu disse que era por respeito e admiração (entre outras coisas) e, ela se assustou, segundo ela é muita exposição, eu sorri. 
O contato com as mulheres foi tão intenso que até sermão eu ganhei, uma senhora evangélica me seguiu por um tempo e assim que teve oportunidade pregou para mim e para meu bebê, derramei pétalas em seus pés e ela se protegeu, tá amarrado. Jesus tem uma grande obra para sua vida é só aceitá-lo, assim ela falava! Outras mulheres agradeciam as pétalas, sentiam-se prestigiadas, outras tinham medo, curiosidade... algumas se irritavam e depois cediam e catavam algumas no chão para esconder nos sutiãs... Algumas pessoas se aproximaram com gestos e símbolos de terreiro me saudando e pedindo a benção, cruzando seus braços, riscando no chão a meus pés e as pétalas nos abençoavam mutuamente. Os homens em sua maioria gritavam, queriam casar com a noiva de vermelho e branco, riam, _chuta que é macumba! Outros se aproximaram, abençoavam... enfim, uns se incomodavam e comentavam uns com os outros, se inquietavam com a ação! 

Por hora é isso que sai de mim, muito mais houve... sou pequena pra dizer! Obrigada Companheiros Obscênicos pela experiência!

Axé!



segunda-feira, junho 11, 2012

A cidade é violenta?

Comecei por esses dias a leitura de um livro muito interessante: "O CHOQUE DO REAL - estética, mídia e cultura”, (Rocco, 2007) da Beatriz Jaguaribe, que é professora da Escola de Comunicação da UFRJ. O livro nos convida "a explorar como novos códigos do realismo produzem versões contrastantes da realidade social. Nestas produções, as fronteiras entre realidade e representação, ficção e vivência, imaginação e evidência tornam-se porosas e negociadas".

Lembrei-me hoje dessa instigante leitura quando estava no ônibus à caminho do trabalho. Escutava a conversa entre dois moradores do meu bairro, que atualizavam os últimos fatos e acontecimentos. Eram narrativas de violências e crimes (ocorridos no bairro) que ambos ficaram sabendo pelas redes de televisão. E assim iam reproduzindo o que haviam visto e escutado (via operações midiáticas) e concordando com o fato de que a cidade é muito violenta e perigosa e que não há possibilidades de segurança e proteção. O homem chegou a afirmar: "a realidade está feia". Depois a mulher disse que por isso prefere ficar bem quieta dentro de casa e longe dos perigos, dos assaltos e das pessoas. O homem respondeu: "você está certa!" Pude concluir a força dos discursos e estratégias midiáticas que produzem a desconfiança sobre os outros e a recusa de se ocupar e vivenciar os espaços públicos e abertos. Diminui-se assim a possibilidade de trocas, con-tatos e encontros humanizadores.

Para JAGUARIBE (2007:101): "nos cenários de incerteza urbana minados pela violência e cultura do medo, a produção de retratos contundentes da realidade em viés realista funciona como uma pedagogia do real e da realidade que potencializa narrativas de significação em tempos de crise”.

Já na página 102: "defino o choque do real, como sendo a utilização de estéticas realistas visando suscitar um efeito de espanto catártico no leitor ou espectador. (...) O impacto do choque decorre da representação  de algo que não é necessariamente extraordinário, mas que é exacerbado e intensificado. São ocorrências cotidianas da vivência metropolitana tais como violações, assassinatos, assaltos, lutas, contatos eróticos, que provocam forte ressonância emotiva".

Considero uma perda significativa de experiência, ficar restrito e fechado dentro de casa, quando se pode SAIR, PASSEAR, CONHECER LUGARES E PESSOAS, ENFIM, QUANDO SE PODE CAMINHAR POR UMA CIDADE E SE DEPARAR COM SUA HETEROGENEIDADE E SEUS MOVIMENTOS.

Acredito que não acessamos o real, mas podemos acessar diferentes fragmentos de realidade, isso no sentido, de percepções. E que muitas vezes são subjetivas, antes de serem coletivas. Mas nunca absolutas e sim, despedaçadas. E interessante que essa dada realidade que tentam nos fazer acreditar nela, se produz a partir de um IMAGINÁRIO MIDIÁTICO (Nina falou disso uma vez no Obscena). Nos contam uma história e acreditamos nela, muitas vezes, sem nenhuma ação crítica.



Toda essa discussão me apaixona muito, por trabalhar artisticamente nas ruas (propondo exercícios poéticos e de desorientação) e como cidadão, por usufruir dos espaços públicos e estar sempre encontrando pessoas encantadoras e lugares prazerosos. Afirmar que a cidade é violenta, para mim, trata-se de um equívoco. Podem acontecer fatos violentos sim (há complexidades infinitas em qualquer acontecimento e que demandam análises mais demoradas e responsáveis), e que merecem discussões sérias e medidas de prevenção e combate, mas, porquê não escutamos notícias positivas e afirmativas da cidade na qual vivemos?

sexta-feira, junho 08, 2012

A cidade tateada - uma deriva sensorial

Na semana passada, Lissandra propôs aos pesquisadores obscênicos uma deriva pela cidade. Ação realizada em duplas e a cada momento (durante quase uma hora) um participante tinha seus olhos vendados e era acompanhado (não guiado) pelo outro. Fiz essa experimentação com a Joyce, querida companheira de pesquisa. Foi uma aventura e a descoberta de muitas sensações e percepções.

A visão é, a meu ver, o sentido mais preponderante, mais hegêmonico, que mais nos guia e nos informa sobre tudo e todos. Ainda mais na atualidade, em que vivemos a CULTURA DA IMAGEM. Em relação à cidade e seus espaços, a visão é um sentido norteador e organizador e que mais acentua e alimenta a ideia de uma cidade-outdoor. (PAOLA BERENSTEIN). Daí a profusão de anúncios, convites, cartazes, sinalizadores etc. Tudo isso faz parte dos projetos dos urbanistas. Uma cidade sempre vista de cima (seja um prédio) ou de frente, sempre numa perspectiva mais geral, caótica e às vezes, anestesiada. Então temos uma relação visual com a cidade. Mas uma visualidade também domesticada e distraida. Muito vertiginosa.

Na deriva foi interessante porque realizei uma exploração tátil (toquei o chão, os canteiros de obra da Av. Santos Dumont com o BRT) e um pouco auditiva com os espaços percorridos. Os ruídos ganharam muito mais força e intensidade, tive medo de atravessar a rua, mesmo sendo acompanhado. Senti corporalmente os sons, as velocidades, as conversas das pessoas, as músicas etc. Muitas afetações. Ao invés de um urbanismo funcional, praticamos um urbanismo sensorial ou poético. Ou até mesmo político, aqui na acepção de LEHMANN ao se referir à uma "política da percepção". E a cidade se revela outra ou "outras".

Fora a sensação de DESORIENTAÇÃO ESPACIAL, não saber mais se localizar nos lugares, o que foi uma experimentação maravilhosa. A vivência da cidade-veia, percorrida por dentro, múltipla, muito mais viva e pulsante. Seria tão bom convidar mais pessoas, moradores da cidade, para viver isso com a gente!

Ao acompanhar a Joyce, foi interesante vê-la pisando lentamente no chão, sentindo os buracos, os bueiros, os vãos no baixo, as DESESTABILIZAÇÕES, a falta de apoio, sentindo o corpo experimentar um certo desequilíbrio e houve um momento maravilhoso: um homem se aproximou e buscou contato com a gente, principalmente com ela que tinha os olhos vendados. Ele cantou e falou coisas numa língua totalmente estranha e diferente. Mas com uma sonoridade contagiante. Puro presente para nós!

Voltamos para a sala do CCUFMG e fizemos uma escrita automática da ação vivenciada. Depois numa conversa com todos, falei do choque que foi quando depois de muito tempo sem ver, tirei a venda e olhar a cidade foi um impacto, demorei um pouco a me acostumar, a visão estava turva e imprecisa e foi tudo muito novo naquele momento.

Outra percepção: esse exercício me descansou mentalmente. A visão é também um sentido de CONTROLE, nos coloca poderosos mesmo, e na vivência, abandonei um pouco o mental ( o pensamento lógico) e frequentei outras paisagens mais físicas e sensoriais. Muito interessante! Essa pesquisa do Obscena é algo que vai mudando minha relação com os espaços da cidade.