Texto publicado por Renato Mendonça, jornalista de Porto Alegre responsável pela cobertura do Festival do Teatro Brasileiro - Cena Mineira, e gentilmente cedido para a publicação em nosso blog.
foto: Cris Livramento
Como parte da programação do Festival do Teatro Brasileiro, o grupo mineiro Obscena orientou uma oficina de três dias no Presídio Madre Pelletier, em Porto Alegre. Para mim, uma experiência difícil de esquecer – além de reviver meus tempos de repórter, me fez espectador privilegiado de um momento fugidio (ou não) de liberdade. Confira minhas impressões abaixo. O FTB etapa RS tem patrocínio da Petrobras e copatrocínio da Caixa. Consulte a programação completa do festival no site da Liga www.liga.art.br e siga pelo twitter @ftb_rs. A oficina que o grupo mineiro Obscena orientou no Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre, pode ser resumido em duas cenas.
Cena 1: Quarta de manhã. 18 internas, escolhidas pelo serviço de valorização social do presídio, chegam para o primeiro de três dias da oficina Diálogos Obscênicos. Elas são carinhosamente recepcionadas pelas quatro atrizes do grupo, mas suas caras estão sérias, os corpos estão duros, o ambiente está frio – talvez pelos 7°C que resfriam a capital gaúcha
Cena 2: Sexta de manhã. O cenário é o mesmo – o frio e descarnado auditório da penitenciária. Mas, agora, ao se reencontrarem, internas e atrizes se abraçam carinhosamente, são amigas, juntas na expectativa do grand finale da oficina – um desfile de modas no figurino do Obscena, que terá 15 internas, entre 26 e 42 anos, como suas modelos.
O que ocorreu entre uma cena e outra, para que elas fossem tão diferentes. Erica Vilhena, do Obscena, tenta explicar:
- Queremos fazê-las repensar a imagem que elas têm de si mesmas. É muito difícil ser mulher e estar presa. Mais que o homem, a mulher sofre por estar afastada dos filhos e da família. Nós viemos aqui trazer doçura, destrinchar o corpo delas. Não chegamos como atrizes, chegamos como mulheres.
A receita para esta transformação passa pela redescoberta da autoestima e dos sentidos, embaçados pela vida nas galerias. Em um dos exercícios, as oficinandas ficavam deitadas de olhos fechados e tentavam adivinhar cheiros como de bergamota ou de cravo, gostos como o de leite condensado e de morango. As atividades sempre incluíam massagem nos pés e relaxamento. Um luxo para quem dispõe de um fino cobertor para se proteger do frio.
Outra etapa importante foi cada uma das oficinandas criar um cartaz, a partir especialmente de recortes de revistas e jornais, que iria carregar na “passarela”. Os cartazes misturavam sofrimento e dor: três deles traziam o recorte com a pergunta “Por quê?” (tirada de um comercial da Pepsi), outro trazia a foto de Claudia Leitte linda, leve e solta, de braços abertos, outro tinha o recorte “Fogo cruzado”, enquanto outro trazia escrito “Mesmo descabelada, continuo sendo mulher. Gorda ou magra, me amo e não vejo diferença”.
O clima pré-desfile expunha os resultados da oficina. Com a trilha de “É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado” e do rap gospel “Entra na minha casa / Entra na minha vida / Mexe com minha estrutura / Sara todas as feridas”, a modelos cantavam alegremente, se maquiavam com a ajuda das Obscenas e davam uma recauchutada no perfil. Se não tem silicone, enchiam um balão e colocavam debaixo da blusa para turbinar o busto, se não tem roupa de grife, veste uma meia-calça colorida e cola adesivos para enfeitar. A Obscena Lissandra Guimarães deu a dica para bem desfilar, apontando para a câmera de vídeo que registrava as atividades da oficina: “Imaginem que essa câmera é nossa janela”. Nesse momento, pouco interessava que todas as janelas do prédio fossem gradeadas.
Foto: Cris Livramento
O desfile foi singelo, mas emocionante, tendo como público funcionárias do Presídio e algumas presas. Exibindo os cartazes, mesmo com os rostos muitas vezes exageradamente maquiados e com os sinais de feminilidade próximos da caricatura, os pouco mais de 20 metros de passarela bastaram para provar que as modelos do Pelletier se negavam a se depreciar. O humor estava lá também: uma das modelos usava um adesivo escrito “Proibido” sobre o busto, outra preferiu colar a etiqueta “Liberdade” nos quadris. No canto do auditório, se via uma bandeira do Brasil que foi usada como máscara por uma das internas durante o desfile. Seria essa a cara do Brasil? Seria liberdade de verdade ou máscara? O depoimento Tatiane, 30 anos, aponta para um final feliz:
- Escrevo poesias e um diário. Tenho certeza de que, hoje à noite, a passagem que vou escrever no diário vai ser uma coisa bonita.
Nas homenagens de praxe que encerraram o desfile, unindo direção do presídio, oficineiras e oficinandas, uma das presas tomou a palavra e mostrou que a lucidez também passeou na passarela.
- Não vamos sair daqui (da oficina e do desfile) transformadas, mas vamos sair atrizes bem-formadas.
Pode ser que a oficina Diálogos Obscênicos sobreviva na vida das internas/modeloss resumida a algumas linhas felizes em um diário. Ou seja esquecida em alguns dias pela ação da crueza do regime fechado. Ou então anime o sonho de alguém pelo resto da vida. Difícil dizer como serão as próximas cenas, mas, naquele sábado de manhã fria, uma janela se abriu.
foto: Cris Livramento
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