agrupamento independente de pesquisa cênica

Composto atualmente pelos artistas pesquisadores Clóvis Domingos, Flávia Fantini, Frederico Caiafa, Idelino Junior, Joyce Malta, Lissandra Guimarães, Matheus Silva, Nina Caetano, Paulo Maffei, Sabrina Batista Andrade e Wagner Alves de Souza, o Obscena funciona como uma rede colaborativa de criação e investigação teórico-prática sobre a cena contemporânea que visa instigar a troca, a provocação e a experimentação artísticas. Também participam dessa rede colaborativa obscênica os artistas Admar Fernandes, Clarissa Alcantara, Erica Vilhena, Leandro Acácio, Nildo Monteiro, Sabrina Biê e Saulo Salomão.

São eixos norteadores do agrupamento independente de pesquisa cênica, o work in process, os procedimentos de ocupação/intervenção em espaços públicos e urbanos e os procedimentos de corpo-instalação, além da investigação de uma ação não representacional a partir do estudo da performatividade e do pensamento obra de artistas como Artur Barrio, Hélio Oiticica e Lygia Clark.

Atualmente, o Obscena desenvolve o projeto Corpos Estranhos: espaços de resistência, que propõe tanto trocas virtuais e experimentação de práticas artísticas junto a outros coletivos de arte, como ainda a investigação teórica e prática de experimentos performativos no corpo da cidade. Os encontros coletivos se dão às quintas-feiras, de 15 às 19 horas, na Gruta! espaço cultural gerido pelo coletivo Casa de Passagem.

A criação deste espaço virtual possibilita divulgar a produção teórico-prática dos artistas pesquisadores, assim como fomentar discussões sobre a criação teatral contemporânea e a expansão da rede colaborativa obscênica por meio de trocas com outros artistas, órgãos e movimentos sociais de interesse.

terça-feira, março 24, 2009

Na arena










No último sábado, dia 21, entramos na arena de troca. Junto ao arena da cultura, projeto que promove formação artística para pessoas das mais variadas faixas etárias, foi possível testar a potência pedagógica de uma experiência coletiva.
No projeto que desenvolvemos ao longo de 2008 (às margens do feminino: texturas teatrais da beira), havia a previsão de uma contrapartida específica em relação a grupos de teatro ou projetos da pbh, pois, mais do que realizar apresentações em eventos, interessava-nos isso: o compartilhamento da pesquisa realizada e o estabelecimento de uma rede de diálogos e experiências com outros grupos ou coletivos. Neste sentido, a ação realizada foi bastante profícua.
Havíamos planejado uma tarde de trabalho, pois teríamos somente de 14 às 18 horas para desenvolver nossa relação com aquele grupo de cerca de quarenta pessoas, entre alunos de artes cênicas, música e artes visuais, professores e coordenadores do projeto. Propusemos, então, um condensamento do formato que havíamos experimentado no último fórum do obscena, o ano passado. Começaríamos com uma conversa – uma exposição rápida do projeto desenvolvido, suas bases teóricas e princípios de pesquisa – para, então, partir para uma exposição de experimentos praticados (escolhemos mostrar mulheres mortas – realizado por mim e lica – e mercado da buceta – instalação da erica) e, daí, para uma caminhada performática – procedimento no qual eles experienciariam um pouco do que vivenciamos ao longo de nosso trajeto de pesquisa – seguida de uma conversa final, na qual eles poderiam colocar suas impressões e questões em relação ao trabalho. E assim foi.

Clóvis, nêga e saulo – sob a coordenação do primeiro – se encarregaram da primeira parte. Como eu e lica faríamos a primeira intervenção, nos apresentamos rapidamente e nos retiramos da sala para que ela pudesse preparar sua noiva. Preparadas as duas, descemos para a avenida dos andradas, pois desejávamos nos colocar em fluxo de trabalho. Não queríamos que nossa ação adquirisse um caráter de apresentação, então buscamos trabalhar como sempre trabalhamos na rua: em relação ao espaço e aos transeuntes. Da andradas nos dirigimos à praça da estação, na qual, na saída do metrô, deixamos nossa primeira mulher morta. Lica se dirigiu à estação da vale do rio doce e ali já encontramos nosso “público” e primeiros anjos da rua. Uma mulher queria atuar com lica, fazer teatro. Ela logo nos deixou. Um outro morador de rua, este sim, não conseguiu nos largar. Era a insurgência do macho.
A noiva, “a mulher mais feliz do mundo”, o instigava, assim como eu, seu contraponto. Aquele homem aguçava minha potência de escrita. Seu desejo de protagonizar a ação me instigava, assim como sua necessidade de se sobrepor àquelas mulheres que ele não entendia.
Ah, que potência a lica conseguiu em sua troca para a mulher objetos, desiludida, triste. Seu olhar sério calou o homem e a platéia que, cúmplice dele, assistia ao trabalho como a um número de palhaços. Talvez somente a partir deste momento eles tenham coadunado com a ação proposta.
Deixando outras mulheres mortas pelo caminho, avançamos então na direção da instalação da erica, montada sob o viaduto de santa tereza, de frente para a avenida. Ela terminava o trabalho. Nêga não resistiu, seu corpo pedia participação no trabalho. Ela não conseguiria abandoná-la tão cedo. Vestiu sua calcinha na cabeça e segurou seu buquê rodo, vassoura, pá. Ao pé do tapete de páginas de revista, escrevi: destrua essa imagem.
E então veio o momento que mais me impressionou de todo o trabalho que realizamos naquele dia: uma mulher começou a destruir, chutando páginas e brinquedos. Logo outros se juntaram à sua ação. Mulheres retiraram pá, rodo, vassoura e os colocaram nas mãos de alguns homens presentes. Mas este foi só o primeiro movimento. Em seguida, a imagem retornaria, mais elevada. Esta mulher não seguraria mais rodos e vassouras. Ela seria redimida. Uma senhora logo buscou uma cadeira na qual sentou erica. Segurou sua cabeça junto ao peito, ela mãe. Em seguida, salvou as bonecas “não, os filhos não podem ir para o lixo” e as colocou nos braços da atriz. Em seu colo, as bonecas bebês marcavam claramente seu lugar de mulher. A mãe é culpada de tudo.
Redimida também a mulher objetos, foi colocada ao lado da primeira, sua mão esvaziada das sacolas, o copo mordaça que cobria sua boca retirado, “agora você pode falar”. Lica recusou este papel, esta ilusão momentânea. Retornou a mordaça copo ao seu lugar no corpo de uma mulher objeto que somente é imagem forte de imagens que vemos a todo momento. Aliás, que víamos ali, sem que isso fosse percebido pelas pessoas que julgavam destruir imagens, mas apenas colocavam outras no lugar. Outras iguais. Meras bonecas a repetir.
É preciso romper, é preciso destruir. Não deixar que a ilusão de um pedestal nos seduza. Não nos deixar levar pela sedução da valorização, da beleza e da singeleza feminina. Qual é nossa essência? O que nos é natural e imutável? Ainda temos medo de não sermos amadas, de não sermos mais reconhecidas como mulheres por aqueles que nos dão o nosso merecido valor (como diria um rapaz, durante a conversa ao final).
Entrei estes dias em um blog muito interessante, um blog cor de rosa. Preciso aprender a ver estas mulheres de perto: movimentorosa.com.br

Nina Caetano.

sexta-feira, março 13, 2009

Sobre a potência das ações II

Começamos o ano com o propósito de desenvolver nossas intervenções: Baby dolls, uma exposição de bonecas e Mulheres mortas. Eu e Lica estamos seguindo a toda com nossa ação.
Chega março e, com ele, o Dia Internacional das Mulheres. O aniversário de 50 anos da boneca Barbie. A excomunhão para médicos que praticam aborto em menina de 9 anos estuprada e grávida de gêmeos, mas não para o seu estuprador. Nem para os homens que, semanalmente, matam suas mulheres no Pernambuco.
O mês das mulheres – um modo que o comércio arrumou de estender seus lucros para o mês, já que flores só são vendidas no único dia que temos, no ano – marcou duas ações interessantes para o desenvolvimento do trabalho com Lica, ambos relacionados à Marcha Mundial das Mulheres, movimento feminista e anti-capitalista com o qual temos mantido estreitas ligações desde março do ano passado.
Sexta-feira, dia 06 de março. A M.M.M. tinha marcado, para este dia, uma concentração na Praça Sete, nossa já velha conhecida de trabalho. Combinamos a ação: Lica sairia com sua mulher objetos de casa, caminharia até a praça, lá faríamos algumas mulheres mortas. Depois ela desmontaria a mulher objetos, e com sua base neutra sobre a pele, seria feita mulher painel, mulher recortes de jornal.
Realmente é interessante observar que, mesmo quando está mais limpa, mesmo assim sua imagem causa impacto quando caminha pelas ruas. Abre parêntesis. Quero marcar uma imagem que vi nesse trajeto e que lamento não ter fotografado, só registrando em minha memória. Ao avançarmos pela Francisco Sales, ela à frente e eu a segui-la, um pouco afastada, passamos em frente a uma casa onde seu dono, um executivo, acabara de estacionar seu carrão com as compras do mês no bagageiro. Uma empregada uniformizada, de touca e tudo, toda cor de rosa, segurava em suas mãos as pesadas sacolas. Ambos, o homem de mãos livres e sua doméstica, pararam para observar e estranhar nossa mulher vaca maravilha. Mas não sua situação. Fecha parêntesis.
Seguimos para o metrô, Praça da Estação (onde ela é ovacionada por um bando de adolescentes), Amazonas, Praça Sete. Chegando à Praça, avistamos 3 ônibus de policiais militares e alguns outros montados a cavalo. A polícia, é evidente, estava ali para nós, mulheres. Vê-los ali me provocou e sugeri à Lica que já fizéssemos uma primeira mulher morta em frente aos policiais a cavalo, que conversavam com uma moça batalhão.
(outro parêntesis: denominações interessantes estas que buscam explicar o "fascínio" de algumas mulheres por determinadas profissões ou bens masculinos. Há a mulher batalhão, a mulher chuteira – que gosta de jogadores de futebol – e a mulher gasolina – que só namora homens com carro. Estas vêm se juntar a várias outras denominações objetos que já se tornaram comuns ao se referir a mulheres: mulher da vida, mulher à toa, mulher da rua, mulher jaca, mulher melancia, mulher filé, samambaia ).
Deixamos uma morta ali, outra no canteiro central, duas perto de uma peça de palhaços que acontecia no quarteirão fechado da Carijós e nos dirigimos ao quarteirão fechado da Rio de Janeiro, onde estava a concentração de mulheres dos movimentos sociais.
Ali Lica desmontou sua mulher objeto e espalhamos nosso material para a próxima empreitada. Em sua bacia-bunda, colocamos a cola e a água que ela carregara nas sacolas. Retirei, dos meus materiais, os recortes de jornais e páginas de revistas. Comecei a pregar em sua roupa alguns recortes que não se fixavam muito bem, devido à diluição da cola. Comecei a pregar em sua pele. João Pequeno, um imenso capoeirista que estava por ali nos observando, ofereceu sua ajuda. Fita adesiva. Pregue se quiser, dissemos a ele. Ele começou um trabalho paciente nas costas da atriz. A fita adesiva não pregava, e ele não desistiu. Ofereceu a fita crepe. Ah, essa funcionou. Nesse instante, aproximou-se um repórter e um fotógrafo do Estado de Minas. Queriam uma matéria, mas não queriam esperar. O fotógrafo já foi ditando: “Fica ali, perto dela, fingindo que prega, não precisa pregar, só fingir”. Diante da mídia, devemos parar nosso processo e nos adequarmos. Não nos adequamos.
Trabalho terminado, fomos passear pela concentração e nos colocarmos ao lado dessas tantas outras mulheres a reivindicar seus direitos. Fizemos mais algumas mulheres mortas e partimos para o nosso local preferido de finalização: a Mac Donald’s com seu imenso M. de Mulher.
Domingo, dia 8 de março. Para este dia, estava prevista uma concentração no Parque Municipal, de onde sairíamos em marcha para o Deoesp, antigo Dops (que, na ditadura, abrigara presos políticos), onde algumas mulheres envolvidas com tráfico estavam encarceradas.
A ação pensada para esse dia fugia ao padrão de intervenção com objetos. Todas nós – incluindo Erica, que não pôde ir e Joyce, que foi – assumiríamos o papel que eu exerço, assumiríamos uma dramaturgia do instante, mas,ao mesmo tempo, seríamos os corpos atuantes. Nada que denotasse uma ação teatral, que nos diferenciasse das outras mulheres da marcha. Com fitas roxas nos pulsos e bandanas do movimento, todas nós - também as mulheres da M.M.M. – seríamos os corpos a cair no chão pelo caminho, deixando um rastro por onde passasse a marcha. E assim foi.
Eu, mulher, mãe, levei meu filho Thomás que, junto com Admarzinho, nos acompanhou por todo o trajeto. Aliás, ali estava cheio de crianças que participavam, já pequenas, do evento. Crianças que suas mães não tinham com quem deixar. Como eu.
Aos meus materiais textuais, juntaram-se as palavras de ordem dessas mulheres e também novos incômodos como as estatísticas da Barbie e a excomunhão. Há sempre novos, a cada mês. A cada dia. Por isso, não posso parar. Vida e arte caminham juntas.
Em alguns lugares, invadimos a rua, paramos o trânsito. As mulheres seguravam o trânsito para que pudéssemos fazer as marcas de corpos a giz no chão e escrever. Se o papa fosse mulher, aborto seria legal. Contra as prisões mentais, contra as prisões materiais. Contra o controle médico. A luta é por respeito, mulher não é só bunda e peito. Enquanto a cada 2 segundos uma boneca Barbie é vendida em alguma parte do mundo, a cada 15 segundos uma mulher é espancada no Brasil. 90% das meninas americanas entre 3 e 9 anos possuem pelo menos uma boneca Barbie. 70% das mulheres assassinadas no país foram vítimas de seus maridos, noivos, namorados. Menina de 9 anos é estuprada e sua mãe excomungada.
Escrevemos no asfalto, na feira, nas escadas do deoesp, suas calçadas ficaram coalhadas de mulheres mortas.
Somos incontornáveis. E irreversíveis.

Nina Caetano
(fotos de joão alberto de azevedo e de nina caetano)